Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Uma petição pública lançada online há poucas semanas pelo professor de História Luís Braga está a motivar as mais desencontradas opiniões na opinião publicada, o que não é de espantar, porque se qualquer petição causa polémica quando enfrenta coisas reais, maior a polémica será quando o seu tema são lendas. E esta tem caroço. Pretende o docente, embalado à boleia na vaga iconoclasta que percorreu alguns países ocidentais, incluindo Portugal, com a vandalização da estátua do padre António Vieira, banir da toponímia portuguesa tudo o que  ̶  avenidas, alamedas largos,  ruas, becos ou quelhas  ̶   tenha a ousadia de ostentar o nome de António Oliveira Salazar.

Luís Braga invoca as suas razões para o propósito, aliás por demais conhecidas e comungadas. Para ele, a manutenção desses topónimos só pode ser “ou por inércia face ao passado, ou por intenção, exaltar”. Esta intenção excomungatória, 50 anos após a morte do ditador e numa altura em que um partido da extrema-direita cresce estrenuamente em Portugal, sucede a outras reações que se sucederam na sequência da intenção de criar um museu dedicado a Salazar em Santa Comba Dão. Para isso, o docente, após consulta no Google Maps, constatou que 22 municípios ostentavam ainda essa toponímia abjeta, e decidiu dirigir algumas missivas aos autarcas locais não só para confirmar se a aplicação informática está atualizada (e a toponímia se mantém), mas também para os incentivar a que seriamente “promovam o debate público junto da população e dos órgãos autárquicos, tendo em vista a remoção urgente de tal designação da via pública”. Ou seja: façam uma análise sensata e refletida, e no final removam tal nome. Este raciocínio faz-me lembrar o de um juiz que um dia no velho Faroeste americano interrompeu abruptamente um enforcamento de um desgraçado na praça pública em modos altamente convincentes: “Alto! Parem já isso…! Antes de o enforcarmos, temos de lhe fazer um julgamento justo…”

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Em Portugal, as questões ligadas com o antigo e quase vitalício presidente do Conselho de Ministros têm quase sempre o condão de dividir a opinião pública em posições extremadas. As hostilidades contra o ditador (a maior parte das vezes justas) têm sempre quem as defenda de modo apaixonado, mas com uma paixão que já se deixou toldar muitas vezes por algum ressabiamento com a democracia e as corruptelas de oportunistas a que esta tem aberto as portas. E são um notório exagero as loas que, com frequência crescente, por aí se ouvem dirigidas a Salazar. Salazar não foi nenhum santo! Assenta-lhe melhor o fato de déspota esclarecido, inflexível e paternalista que viveu num contexto histórico mundial preciso, e que condicionou diretamente a História de Portugal durante quase 50 anos. A memória desses tempos não foi feliz. Houve muita pobreza extrema, muitas injustiças sociais, uma guerra colonial onde morreram e se estropiaram gerações de jovens, uma polícia política inclemente, e prisões, perseguições e torturas dos que pensavam fora da pauta do Estado Novo. Era precisamente este Estado Novo e as suas finanças que Salazar incensava, muito mais que ouvir e respeitar a opinião dos outros. Nascido em Santa Comba Dão, seminarista em Viseu, universitário em Coimbra, tesoureiro das finanças públicas em Lisboa, talvez estes episódios tenham marcado incisivamente a sua ideologia conservadora, reacionária, católica e rural num país que era igual. E que provinha, quando Salazar começou a governar, dos desmandos financeiros e desvarios republicanos. Era o Estado e a pátria que comandavam o pensamento tautológico de Salazar, a trilogia “Deus, Pátria e Família” era a sua divisa, o Estado, a autoridade e a sua moral não se discutiam e as feridas disso ficaram expostas por todo o país quando caiu (literalmente) do poder em 1968.

A questão da petição para a erradicação do nome do ditador visionário levanta questões difíceis, algumas delas relacionadas mesmo com metodologias, ideologias e critérios. O que se pretende realmente quando uma comunidade local atribui um nome, sobretudo o de uma pessoa, a um lugar público?

A comunidade municipal ou de vizinhos pretende homenagear alguém, e essa é forma de retribuir? Ou quer deixar o seu espaço vinculado à memória de uma pessoa que foi grande ou de uma ideologia que marcou uma época ou foi importante no seu tempo, sendo certo que estas formas de ver divergem muito com o tempo, a cultura e as próprios indivíduos. Haverá até outros modos de atribuir nomes a ruas ou a largos. Um amigo meu de Leiria conta que a rua da aldeia em que nasceu e viveu algum tempo ficou com o nome de Salazar por uma razão absolutamente surpreendente: atribui-se à rua, por asfaltar, esse nome para que a Câmara se envergonhasse disso e fosse lá, calcasse o alcatrão e não deixasse desonrado o nome do então presidente do Governo. Uma rua com tal nome nunca podia ficar por alcatroar… Mas os autarcas, ou porque não tivessem dinheiro ou porque tivessem conhecimento da ratoeira, deixaram-na ficar com a poeira que tinha. A toponímia não era uma homenagem, mas uma estratégia ardilosa. Depois de abril de 1974, a democracia alcatroou a via, mas não se incomodou com o nome nem com a sua historieta… Provavelmente, noutros largos e avenida é mais importante resolveram a conflitualidade do trânsito ou as condições do alcatrão e dos passeios do que o nome de alguém − 50 anos depois da sua morte e que até agora pouco incómodo deu aos vizinhos.

A questão da petição parece-me poder inscrever-se na praga do politicamente correto que se instalou na sociedade portuguesa e em muitas outras, e que procura impor uma ditadura do gosto e passar um rolo compressor sobre todas as outras formas de ver, de sentir e de pensar, não tendo sequer qualquer problema em apagar as memórias da História em nome de uma ideologia assética, monolítica e absurda, olhando tudo apenas pelo prisma do “daqui e de agora”. Hoje varre-se o nome de Salazar, amanhã o do Marquês de Pombal, depois segue-se o do Infante D. Henrique, e com jeito e manhas hão de chegar a Mendes Cabeçadas, Gualdim Pais e D. Afonso Henriques. Lenha e combustível para estas mentes ardentes nunca lhes faltará, e se encontrarem a habitual indiferença dos demais, é fartar vilanagem…

A questão é que a toponímia também está muito ligada aos lugares públicos, ao seu espírito e ao tempo em que foram criados. A toponímia é uma coisa séria e sensível, não se apagam nomes que a mor parte das vezes têm muitas histórias e razões. Mesmo que hoje não concordemos com elas, nem com o que fizeram os seus protagonistas. A democracia também há de ter esta grandeza, e uma placa de mármore ou de azulejos coloridos assente numa parede não há de ser ameaça para ela.

Salazar tinha um problema: não admitia que se pensasse de uma forma diferente da sua. E não estão os signatários desta petição maccartista a trilhar pelo mesmo caminho, mas em sentido contrário? Tenhamos grandeza, e não andemos como anões, incapazes de levantar os olhos do chão. A História não se apaga nem se conta à maneira do que hoje pode parecer mais conveniente. Pode não se gostar, mas Salazar pertenceu à nossa História, e muito  ̶  atrevo-me mesmo a dizer que demais. Será que o predatório apagamento do seu nome de 22 lugares públicos vai retirar os signatários de um pesadelo e resolver algum problema do país?

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