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Tomaz Vieira da Cruz, poeta da vila de Constância, destacou-se por ter sido o primeiro poeta a abordar os temas da escravatura, da mestiçagem e da «raça» negra. Foi também pioneiro no tratamento de temas sobre a descaracterização da tradicional paisagem urbana de Angola. Um conterrâneo a figurar num futuro mural dos poetas de Constância, com obra reconhecida nacional e internacionalmente.

Quando se fala do poeta constanciense e da lusofonia, Tomaz Vieira da Cruz, incide-se muito sobre a questão da literatura colonial. Com a presente crónica pretendo despoletar a atenção dos críticos para o nacionalismo integro do nosso poeta, a despeito de algumas ideias feitas que lhe têm sido coladas por alguns, sem qualquer justificação, a meu ver.

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Para Francisco Soares é urgente que compreendamos o processo literário perseguido e construído pelo «príncipe dos poetas coloniais» para assim o situarmos com exactidão na cronologia literária do território que então o recebeu, Angola, hoje, país da lusofonia de pleno direito.

Sabemos que escritores nacionalistas como Agostinho Neto e Viriato da Cruz, glosaram motivos e temas que Tomaz manejara com mestria.

A memória literária que Angola gravou de Tomaz durante décadas parece contrastar com uma maioria de escritores do segmento colonial e autóctones, de «incipiente preguiça».

Em 1966 o jornal ABC dedicou ao ilustre filho da vila de Constância um suplemento (1) on de se pode ler, por exemplo: «Da estada na capital do Império ficou-lhe a convivência com o meio literário e artístico lisboeta, muito em especial com António Botto».  Este poeta elogiou-lhe a poesia e entre a lírica de ambos encontrou Mário António várias afinidades, como descreve o dito suplemento: uma coloquialidade «entre popular e requintada», «a notação de tempo como factor de um ritmo mentalizado dos poemas» […] uma visão plástica em que o poeta se compraz […] o requinte de certas imagens […} o descritivo vivo de certos poemas […] uma certa tendência para o aforismo».

Francisco Soares, prefaciando o livro «Quissanje» de Tomaz, fonte privilegiada da presente crónica, dá-nos uma visão crítica, informada, e quase completa da evolução literária do poeta.

O leque de influências do poeta Tomaz é, porém, muito mais alargado do que se poderia antever à partida, numa análise, sumária, passando pelo saudosismo, integralismo e decantismo, antes de mais. O modernismo de Orfeu tê-lo-á influenciado menos. Nos seus primeiros poemas iniciais a referência africana é escassa. Segue geralmente estruturas tradicionais portuguesas. O versilibrismo terá sido influenciado por Pascoaes e António Botto.

No dizer informado de Francisco Gomes «quando alguém que se diga nacionalista promove a destruição de outras nações torna-se imperialista e colonialista». Tomaz Vieira da Cruz, pelo contrário, «denunciando as injustiças, a escravatura, a imoralidade de certos colonos e de certas situações coloniais, tal como irmanando-se com os Bailundos e outros povos colonizados, demonstra ter sido um nacionalista íntegro mais do que integralista». (2)

O poema inédito que o poeta Tomás Jorge, filho de Tomaz Vieira da Cruz deu à luz através das publicações Imbondeiro (3), intitulado «África», segundo o citado autor do proémio de «Quissanje», «tira de vez aos mais cépticos qualquer dúvida sobre este homem visceralmente português e humanamente africanizado:

Quando os homens compreenderem na voz do mar
a trágica sinfonia
das ondas pedindo ao Céu
justiça do seu perdão,
então podeis olhar de Deus o olhar clemente
que nos está olhando em cada estrela
e nos está julgando eternamente!

Então podeis ouvir todo o Sertão
Gritando por seus filhos naufragados
nos temporais de cada escravidão,
ou exilados, longe, como réus
da civilização…

Então podeis ouvir a voz da África
No coração de Deus!»

A convivência artística na metrópole permitiu a Tomaz ficar informado sobre os grandes actores de teatro e, depois, do cinema, dessa época.  O poeta inclui-se agora no grupo dos que mais entusiasmadamente pugnaram pela vinda de grandes companhias e de actores conhecidos a Angola. Francisco Gomes refere mesmo um belo poema que Tomaz dedicou a Alves da Costa, aquando da sua passagem por Luanda. É com esta formação cultural que Tomaz Vieira da Cruz avança para Angola, instalando-se em Novo Redondo (hoje Sumbe), em 1924.

Já no «exílio amoroso», as aspirações literárias e culturais levam-no a promover recitais e peças de teatro. Criou o jornal «Mocidade», publicação mensal literária, artística e de notícias.

A integração de Tomaz no meio rural de Novo Redondo, terá tido influências decisivas sobre o poeta, levando a uma «reviravolta» o seu nacionalismo. Para Francisco  Soares, o nosso conterrâneo tornou-se «um caso raro de crioulização e de entrega ao outro, com paralelo na cultura portuguesa só em Wenceslau de Morais».

A sua integração na pequena vila, hoje,  Sumbe,  deu-lhe de África uma vivência muito mais  completa e peculiar do que a que teria em Luanda, defende. Daí a africanidade dos seus versos, remata.

Em «Bailundos» Tomaz retrata, com superioridade, o drama da «gente negra».  Neste e noutros  poemas,  o poeta faz a denuncia das mulheres enganadas e trocadas de «importação», bem como das sequelas da escravatura.

Amou e respeitou o «selvagem» chamando-se a si «primitivo». Para Francisco Soares o soneto mais vibrante escrito por Tomaz define-o de tal forma que a partir dele, explica,  «se deve compreender a sua poesia e a sua personalidade». Chama-se  «A última batalha». O amor aí define-se quer como o «trópico» mas também como a «autobiografia».

Mas o amor em Tomaz é também, sensual e concupiscente. É também,  «a entrega absoluta e traída, ou desesperada, das mulheres aos colonos que depois as abandonaram, aos homens que o mar levou na escravatura do Brasil e das Américas, etc». É, ainda, uma soma anímica. Esta componente permite perceber passagens como aquela em que se diz que as duas «raças» se encontraram «no mato, em nostalgia, / num exílio carinhoso» (no poema «Mulata»).

A palavra «saudade» atravessa e perpassa muitas das páginas dos seus livros, emergindo desde logo no subtítulo do primeiro, «Saudade negra». A palavra «saudade» em Tomaz não se reduz  ao saudosismo, aliás, aliado ao sebastianismo. Parece haver no soneto «Pátria minha» uma saudade própria, individual, criativa, conquanto dolente, do império de sonho e de maravilha da verde mocidade… ao mesmo tempo, uma saudade do país dos negros. Comos se houvesse, duas saudades…

Saudade, pois, da «Neta de escravos»: «Na praia de Quicombo olhando o mar,/ como quem espera alguém que anda perdido», / a triste e linda Ébo, a olhar, a olhar, / tem lágrimas no rosto humedecido»… e até hoje «ainda espera  quem não volta mais».

Em Tomaz o sentimento saudoso também aparece ligado ao fatalismo. No «Drama em Kaungula», expressão superior da dignidade da mulher enganada e trocada pela «branca», a personagem central é definida como «aquela que morria de saudades». A saudade é aí o veio  de ligação entre o amor e a morte.

Obrigado Francisco Soares.

José Luz (Constância)

PS – não uso o dito AOLP. Tomaz Vieira da Cruz,  poeta português nascido em 22 de Abril de 1900, na vila de Constância,  falecido em 7 de Junho de 1960, em Lisboa. Em 1924, partiu para Angola e aí continuou quase até ao final da sua vida. Foi o fundador e director do jornal literário Mocidade. Publicou Vitória de Espanha (1939), Cinco Poesias de África (1950), Quissange – Saudade Negra (1932), Tatuagem (1941) e Cazumbi (1950).  Segundo a  Infopédia, «salientou-se por ter sido o primeiro poeta a abordar os temas da escravatura, a mestiçagem e a raça negra, assim como a descaracterização da tradicional paisagem urbana de Angola».  Não foi incluído pelo município da sua terra natal nos dois murais dos poetas.

(1) Notas biobibliográficas» do supl. «Artes e Letras», Jornal ABC – Diário de Angola, 10 de Junho de 1966.

(2) Quissange, Tomaz Vieira da Cruz, Imprensa Nacional da moeda, 2004. Com prefácio notável de Francisco Soares, que sigo de bem perto no presente artigo, indispensável para o estudo da obra do poeta.

(3) Antologia Poética Angolana, I, Sá da Bandeira, col. Imbondeiro, 1963.

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