Não sei se já se deram conta, mas Novembro é o mês mais melancólico do calendário. É o mês menino da lágrima, se quiserem. O Outono, que começa oficialmente no fim de Setembro, mas que faz ronha durante todo o mês de Outubro, instala-se agora com força. E a nostalgia poética das árvores que perdem a folha convida à contemplação, inculcando até no espírito mais superficial pensamentos inspirados. Em Novembro qualquer um de nós pode ser poeta. Ainda que seja poeta do desencanto.
Se eu tivesse de escolher o mês que melhor assenta ao temperamento do nosso país, não teria quaisquer dúvidas: Portugal, para mim, é Novembro. Os meses austeros do frio ponho de parte, porque não somos nada um povo invernoso, da mesma forma que excluo os meses da Primavera, demasiado florida para traduzir a natureza sóbria da gente portuguesa. E apesar de o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas se celebrar em Junho, apesar da febre dos santos populares, com as suas marchas, arraiais e bailes, mais o tributo nacional à sardinha assada, não sinto que Portugal seja um país de Junho, mês colorido que anuncia a vinda do calor e que faz pensar numa força geradora que não nos caracteriza. Então e o querido mês de Agosto? ouço-vos perguntar. O mês das férias na praia e das enchentes que todos os anos fazem o país afundar, a sul e a ocidente, com o peso dos turistas em barda? O mês das festas de Verão e da folia? Também não me parece. Portugal, bem pode ter uma costa que vai de cima a baixo e beneficiar de sol a rodos, mas no fundo a alma portuguesa não é solar, nem festiva, nem azul, e muito menos turística. Para mim, a alma portuguesa é nublosa e parda, cheia de fumos e nevoeiros. Cinzenta como a pedra dos nossos castelos a perder de vista, das muralhas e dos templos. País do toque de finados, das brumas da memória e das glórias póstumas. Somos da cor do passado, e o passado é frequentemente turvado de névoas.
Olhem, é como diz Fernando Pessoa, Portugal é nevoeiro. O que não podia casar melhor com o fumo dos assadores da castanha quente e boa, com o fumo das primeiras lareiras acesas no aconchego das casas, o fumo das queimadas agrícolas. Fumos diversos que tingem o horizonte de presságios, de quimeras e de sonhos naufragados. E quem diz o nevoeiro português de Pessoa, diz aquele outro nevoeiro, o tal que anuncia a vinda de um D. Sebastião que nunca chega. O Novembro de todos os santos, das broas, da romaria aos cemitérios, do magusto, da chegada da chuva e dos dias baços, a despeito do fugaz Verão de São Martinho. E Novembro, mês da Feira do Cavalo da Golegã, já agora. Talvez por lá tenha andado este ano o cavalo branco do Sebastião, o cavalo do mito, incógnito no meio dos outros, a ver se topava com o seu cavaleiro perdido, para fazerem enfim a sua aparição triunfal, esperada há tantos séculos.
Novembro, que me faz recuar no tempo e pensar numa certa noite de nevoeiro, em que eu, então estudante universitária, regressava a casa de carro para passar o fim-de-semana. Nessa altura, e porque eu já não vou para nova, não existia ainda nem IP6 nem A23, e recordo o terror que senti ao dar por mim a circular num troço da N110 que não tinha no piso as linhas brancas pintadas, as marcas rodoviárias que delimitam a circulação. O nevoeiro apresentava-se nessa noite tão denso, que juro que não exagero se afirmar que o meu campo de visão terminava literalmente no meu nariz. Não obstante estas condições, eu não conseguia encostar o carro, uma vez que não via onde o fazer e não podia simplesmente imobilizar-me no meio de uma nacional, sob risco de levar com outro automóvel pela traseira. Portanto fui avançando, numa fuga para a frente sem remédio, gelada de medo, e tão lentamente quanto o andor de uma procissão a caminho do fim do mundo, receando a qualquer instante dar com os ossos na valeta ou ir de encontro a outro carro que viesse em sentido inverso, tão cego quanto eu. Felizmente, apesar da garra do medo, o acidente não veio, e em vez do desastre na estrada enevoada que eu temia, cheguei afinal em segurança ao meu destino.
Portugal talvez seja esta incerteza no caminho, que sei eu? Uma espécie de cegueira que, no fim de tudo e contra todas as expectativas, chega onde tem de chegar. Ainda assim, como tantos outros compatriotas, eu sonho em Novembro com o regresso dos dias quentes. Ah, o meu país pode ser Novembro, mas quem dera que fosse Junho.