
O lugar tem espírito e é o sítio das coisas simples, singulares e aprazíveis. É aí que encontramos, no outonal tempo delas, as castanhas assadas a crepitar do fogo dos assadores a enviar mensagens em aromas sugestivos e sedutores para o atmosfera húmida e fumarenta, e depois serem vendidas à dúzia e possivelmente embrulhadas ainda em folhas das velhas páginas amarelas ou de jornais que ainda anunciam a última vitória do Sporting no campeonato de futebol. Ou, já com o verão adiantado, todos aí regalar-se com um gelado para acalmar a calina, e retomar o destino mais refrescados e com sentimentos mais positivos e poéticos. Aí podemos encontrar também o pouso de uma das suas esplanadas, a pausa do café a meio da manhã, a visão aprazível e os aromas dos amores-perfeitos, as bucólicas iluminações de Natal e Ano Novo, a sombra que é um abrigo regenerador dos fins de tarde, nem mesmo a melancolia lhe falta, quando das caminhadas a sós ao início da noite. Ou então as barraquinhas das festas da cidade, quando as havia, porque agora os tempos as desaconselham, e este ano voltamos a penitenciar-nos da animação daqueles dias diferentes, da música, das jantaradas em mesa corrida e a céu aberto, e da convivialidade bem untada com sardinhas e regada a vinho ou cervejas que sempre traziam. E, last but not least, a Rua Luíz Falcão de Sommer, mais conhecida pela rua calcetada ou rua pedonal, e é sobre ela que começámos a divagar desde o início, é o lugar dos encontros improváveis e imprevistos na cidade, o sítio do avistamento de um amigo, de alguém conhecido ou de pessoas que outrora víamos todos os dias e, entretanto, a vida afastou de nós durante anos, tantos que já não sabemos quantos.
Esta rua tem a sua magia, ou ganhou o direito a pensarmos que a tem, tal o número destes encontros motivados pela sorte, pelo acaso, ou por uma daquelas simples coincidências com que a vida, felizmente, gosta de nos presentear, embora na maior parte das vezes, muitos de nós não damos por isso, nem estamos sequer dispostos a aceitar como dádivas, para continuarmos a dizer mal dela.
É claro que a Luíz Falcão de Sommer não é nenhum modelo urbano, e muito menos um prodígio urbanístico, nem sequer a calçada à portuguesa com que foi pavimentada é um primor. Poderiam ser usados padrões para os desenhos com os seus pequenos cubos brancos e pretos motivos mais identitários, mais em conformidade com aspetos que nos dão carácter e alma, e não motivos destituídos de significado e sem qualquer sugestão de beleza. Como muitas outras coisas realizadas na cidade, a calçada que aí despejaram sem gosto, nem sensibilidade, nem inteligência, foi ali feita sem esplendor e apenas para despachar… Mas não é isso que, mesmo sendo um sinal de algum defeito, lhe retira o seu élan, o seu espírito e aquela aptidão raríssima para proporcionar o improvável, sobretudo nesta época de “transição digital” (mais uma daquelas expressões que já pegaram de estaca, obrigado António Costa!), compras online e entregas em casa, e fazer-nos encontrar amigos e pessoas que estiveram nas nossas vidas, e agora reencontramos muitos anos depois ̶ amigos de adolescência e dos jogos de futebol de rua, colegas de liceu e dos jogos de matraquilhos, de bilhar e de ping-pong, atletas dos treinos e das corridas de estrada pelo CLAC do Entroncamento (muitos deles campeões, e medalhas de ouro, sobretudo como seres humanos), antigos alunos e alunas, com grandes histórias de vida e aventuras para contar, os meus inigualáveis colegas da escola, e grandes professores, que ficaram amigos depois dela, e outros compagnons de route, nas formas mais singulares que se possa imaginar. Parece que o grande desígnio daquela via de andar a pé é mesmo o de gerar estes encontros, impedindo que empatias antigas morressem no desconsolo da distância dos tempos modernos…
E é a estes tempos modernos, de muito confinamento, pouca liberdade para circular e nenhuma para conviver ou reunir, sem ser pelo Zoom, com que um misterioso vírus nos encafuou dentro das paredes de casa, e com os olhos já envidrados de tanto recurso ao computador, aos telemóveis e aos écrans dos televisores, que chegámos. Saímos de casa, sinistramente embioucados com umas máscaras preventivas puxadas até aos olhos, e com que agora percorremos as ruas e avenidas em anonimatos recíprocos ̶ necessários como medida preventiva para evitar a contaminação pelas virulentas estirpes, mas de efeitos psicológicos e até sociológicos difíceis ainda de prevenir e avaliar. E é neste ponto, sem poesia nem transcendência, que nos encontramos.
Ultimamente, tem-me acontecido um fenómeno curioso, e já com alguns episódios ilustrativos que têm ocorrido na rua calcetada, e que não tem diminuído a sua magia, até talvez bem pelo contrário. Embioucados, como faziam as mulheres do Algarve no final do século XIX para passarem despercebidas nas suas terras, cruzamo-nos nas ruas sem nos reconhecermos. E enquanto conversamos com alguém no meio da via pedonal sobre o tempo, o milagre do Sporting ganhar este ano o campeonato ou, inevitavelmente, a pandemia e o processo de vacinação em curso, ou, simplesmente, para pôr a conversa em dia, outro alguém, muda subitamente de direção e dirige-se a nós, baixa a máscara, eleva a voz, e desfere:
̶ Olá, Vicente! Conheci-te pela voz.
Já me sucedeu ali algumas vezes, e também já noutras aconteceu o mesmo, mas ao contrário:
̶ Olá, Francisco! Conheci-te pela voz.
É este o insuspeito poder do timbre da nossa voz que a pandemia veio evidenciar mais, e agora com exuberância, estamos a reconhecer-nos uns aos outros por uma característica secreta de cada um de nós, que é única, como uma impressão digital, e uma maravilha que agora nos permite sermos reconhecidos por quem nos estima, e que, de outro modo, passaria fazendo com que parecêssemos dois estranhos.
̶ Olá, Segismundo! Conheci-te pela voz…