Não consigo confiar em quem afirma que não tem arrependimentos. E tudo piora se disser a famosa frase: “Porque se não o fizesse, não seria quem sou hoje, ou não chegaria onde estou.”
É uma afirmação perigosa.
Não têm arrependimentos? Nem um? Peço desculpa se quem lê isto é uma dessas pessoas, mas lamento informar: não acredito. A vida é feita de remendos, recomeços e arrependimentos. Muitos.
O arrependimento é o fio invisível que nos cose à consciência. Ele pesa, por vezes aperta, mói nos dias mais cinzentos, mas também molda. Quem nunca sentiu o travo amargo de um e se? talvez não tenha olhado para trás com atenção suficiente.
Porque há escolhas que nunca deviam ter sido feitas. Palavras que não deviam ter sido ditas. Caminhos que nos desviaram do essencial. E não há problema em admitir isso. O problema está em romantizar cada erro como se fosse um degrau inevitável para o “sucesso”. Seja lá o que isso for.
Nem tudo o que fizemos foi necessário para chegarmos onde estamos. Algumas coisas foram apenas pedras desnecessárias no caminho, tropeções evitáveis, desvios que custaram caro.
Eu sei o quanto custaram os meus. E ainda me recupero de alguns.
Mas vivemos numa era em que admitir que errámos é quase um pecado mortal. Como se o fracasso e a má decisão tivessem sempre de ser reciclados em grandes lições de vida. Como se ninguém pudesse simplesmente dizer: “Sim, estraguei tudo. Foi estúpido. E se pudesse, faria diferente.” ou “Se pudesse, voltava atrás.”
És capaz de ler isto e dizer: “Comigo nunca aconteceu isso”?
Isso não é humano.
Não tens mesmo aquele momento que, se pudesses apagar, apagavas?
Não. Claro que não tens.
Preferimos continuar a criar narrativas bonitas para os nossos próprios desastres. Embelezamos a queda, metemos uns filtros na desgraça e chamamos-lhe experiência. Às vezes, só para não lidar com o incómodo de saber que tínhamos capacidade para ter sido melhores, e simplesmente escolhemos não ser.
E isso dói.
Ou para lidar com aquele arrependimento de não ter vivido um momento por medo das consequências. Porque metemos na cabeça que a nossa vida é de toda a gente menos nossa. Que estamos sob julgamento constante, quando o único tribunal que existe vive dentro da nossa cabeça.
Sim, há arrependimentos leves. Como aquele corte de cabelo que nos fez parecer um cogumelo deprimido. Ou aquela mensagem que não devíamos ter enviado depois da terceira taça de vinho. Ou aquele beijo que não tivemos coragem para avançar.
Mas também há os outros. Os pesados. Os que não se desvanecem com o tempo. Os que carregamos como um casaco demasiado apertado.
E nem vale a pena dar exemplos. Nós sabemos exatamente quais são.
Por isso, não me venham dizer que não têm arrependimentos. Digam antes que aprenderam a viver com eles. Que os transformaram noutra coisa. Mas que os têm.
Porque não há nada mais humano do que olhar para trás e perceber que, em certos momentos, podíamos ter escolhido outro caminho, provado outro sabor, vivido outra vida.
Mas não o fizemos.
E a verdade disto tudo? Há arrependimentos que não nos ensinam nada. Apenas nos lembram, dia após dia, que nunca teremos uma segunda oportunidade para os corrigir.
E esse é o tipo de arrependimento que não se recicla, não se fabrica, não se apaga.
SANDRA MAY
Acompanha o trabalho da autora em:
https://www.instagram.com/saandramay/
https://www.facebook.com/saandramay/