PUB

A história que vou contar é verídica e documentada, ainda existem familiares de Amélia Pereira Monteiro Aillaud no Entroncamento. É a história de um percurso no feminino, um percurso brilhante, direi mesmo, brilhantíssimo, mas discreto, numa época em que só estudavam as jovens das famílias nobres e burguesas, apenas para adquirirem cultura, raramente para terem uma profissão.

PUB

O pai de Amélia, Francisco Alberto Pereira, era serralheiro, natural de Torres Vedras. Conheceu Antónia, do Porto, a futura mãe dos seus filhos, e casaram em Lisboa, onde Francisco se estabelecera com uma oficina de construção de carruagens de tração animal, meio de transporte da época. Em Lisboa nasceram Emília, Amélia, Feliciano e Maria das Mercês.

O negócio de construção de carruagens correu mal, e Francisco Alberto Pereira veio para os caminhos de ferro do Entroncamento, continuando com a sua função de serralheiro. Terá vindo em 1865, e foi morar para as Vaginhas, lugarejo um pouco distante da estação ferroviária, mas onde havia habitações. O Entroncamento, nesses primeiros anos, não tinha nada.

Nas Vaginhas nasceram Feliciana e Rosalina, esta última que veio a ser mestra de primeiras letras, e fundadora da primeira escola particular que existiu naquele pequeno lugar, e no Entroncamento que então começava a formar-se.

Francisco tinha um irmão, António Alberto Pereira Torres, que era alfaiate, um alfaiate de uma certa categoria, presume-se, pois desempenhava na corte a função de reposteiro honorário da real câmara. Ser reposteiro era um cargo em que o seu detentor tinha por dever correr as cortinas da câmara real. Certamente não andaria pela corte somente para exercer aquela tarefa, fazia também o seu trabalho de alfaiate.

Pereira Torres fora nomeado, pelo rei D. Luís, cavaleiro da ordem militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelos serviços prestados durante as epidemias de cólera mórbus e febre amarela, na capital, nos anos 1856 e 1857. Também recebeu, em 1866, do governador civil de Lisboa, uma medalha de prata “para distinção e prémio concedido ao mérito, filantropia e generosidade, pelo zelo e dedicação com que se houve no incêndio dos paços do concelho de Lisboa e edifícios contíguos”.

Esta enumeração de distinções mostra que Pereira Torres tinha tendência para iniciativas de carácter filantrópico, e a sua frequência da corte deve ter-lhe alargado bastante os horizontes, porque decidiu ir para Paris, o que deverá ter acontecido em 1867.

Por volta de 1868 ou 69, Pereira Torres veio ao Entroncamento, melhor dizendo, às Vaginhas, com a ideia de levar uma sobrinha consigo, e foi Amélia a escolhida, tinha ela uns 9 anos, idade já aceitável para fazer uma viagem longa.

A visão de Pereira Torres, em relação a esta sobrinha, mostrou uma grande perspicácia na avaliação das suas qualidades, porque Amélia fez estudos até ao grau superior, e foi sempre uma ótima aluna. Foi reveladora, também, da mentalidade do tio, quanto aos estudos das mulheres, que a estadia em Paris propiciava, cidade aberta e cosmopolita.

É evidente que para fazer estes caminhos, naqueles tempos, era preciso ter dinheiro, e Pereira Torres teve de abrir os cordões à bolsa, mas sendo um alfaiate bem-sucedido, como narram as crónicas familiares, e os documentos encontrados confirmam, não deve ter sido difícil.

Talvez por ser portuguesa, Amélia Pereira foi notícia de jornal, por causa dos seus exames. Em La France, de 22 de julho de 1883, lê-se: « Une jeune portugaise, M.elle Amélia Pereira, vient de passer de la façon la plus brillante ses examens pour le brevet supérieur, au Pavillon Flore. »

Em L’Évenement, de 29 de julho de 1883, a notícia é mais detalhada : “Les examens dits d’Hôtel de Ville ont été particulièrement remarquables cette session. Une jeune Portugaise, Mlle Amélia Pereira, déjà deux fois diplômée, a obtenu son brevet supérieur de la façon la plus brillante. Mlle Pereira, élève de Mlle Lancelot, est la nièce de M. Torres, attaché honoraire de la maison royale de Portugal. »

Esta segunda notícia não só especifica que Amélia já tinha dois diplomas quando fez este exame, com brilhantismo, mas que o seu tio era adido honorário da casa real portuguesa. Não é mencionada a circunstância de ser alfaiate.

Há uma notícia anterior, de 1882, a propósito de uma lotaria de 500 francos ganha por Amélia Pereira, em Le courier du soir, de 20 de novembro de 1882, e aí, sim, são mencionados os seus exames “si brillants” [tão brilhantes], e o facto de ser sobrinha do conhecido alfaiate do Boulevard dos Italianos.

Pereira Torres não se enganara na sua decisão, Paris fora-lhe favorável como local de trabalho. Mas não viveu longa vida. Faleceu na mesma cidade em 9 de março de 1890, com 58 anos.

Amélia tornara-se professora de línguas e tradutora, e poderá ter sido na sua relação com as editoras, que terá conhecido o jornalista e romancista Alfred Sirven; ou muito simplesmente, porque sendo o seu tio alfaiate das elites parisienses, terá sido, também, o alfaiate de Sirven. O que é certo é que é este Sirven que assina a declaração de óbito de António Alberto Pereira Torres.

Portanto, em 1890, Amélia e Alfred Sirven já se conheciam. Virão a casar em 18 de novembro de 1896, depois de Sirven ter pedido o divórcio do seu anterior casamento. Não durou muito este, porque Sirven faleceu subitamente em 1910. Ficou conhecido como jornalista independente, sátiro e panfletário, chegou a estar preso.

Amélia havia feito uma tradução do inglês para português, da obra O Caracter, de Samuel Smiles, livro que teve reedições em várias datas, algumas não datadas, e todas publicadas no Brasil pela editora Garnier, e é este o único livro com a menção do seu nome, como tradutora, na folha de rosto, que foi possível encontrar online, porque ainda é procurado.

Ela trabalhava, também, para as Edições Aillaud, do conhecido livreiro e editor Júlio Monteiro Aillaud, nascido em Coimbra e descendente de livreiros. Júlio Aillaud herdara de sua mãe uma livraria em Paris, e abrira outra em Lisboa. Em 1910, associou-se ao proprietário da Livraria Bertrand, a mais antiga livraria portuguesa, e nasceu a Aillaud e Bertrand.

De quando dataria o conhecimento de Amélia com Júlio Aillaud, não é possível saber.

Mas há uma biografia familiar de Amélia, escrita por Eugénio Poitout, seu sobrinho-neto, que indica ter sido a filha de Júlio Aillaud, Germaine, que terá sugerido o casamento do pai, já viúvo, com Amélia, também viúva. Com interferência, ou não, casaram ambos, em Paris, em 1912, no dia 6 de novembro.

Com este casamento, Amélia volta a Lisboa, sua cidade natal, num enquadramento que lhe permite ter contactos diretos com escritores portugueses, pelos menos os que frequentavam a conhecida livraria do Chiado. Talvez já conhecesse pessoalmente alguns deles, como Aquilino Ribeiro, que estivera em Paris entre 1910 e 1914, e é a Livraria Aillaud e Bertrand que, em 1913, edita Jardim das Tormentas, a primeira obra literária de Aquilino, o qual marcará presença nas exéquias de Amélia, quando ela morrer.

De relevar ainda, neste segundo casamento de Amélia Pereira Monteiro Aillaud, o ambiente livreiro em Paris, onde Aillaud introduzia edições com autores portugueses, e onde foi um dos fundadores da biblioteca portuguesa da Sorbonne.

Talvez Amélia tenha deixado de fazer traduções, após o seu segundo casamento, mas continuou com atividades ligadas à edição, nomeadamente a revisão de texto. Numa reedição do Vocabulário ortográfico e remissivo da língua portuguesa, da autoria do filólogo, linguista e lexicógrafo Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, o seu autor agradece a Amélia, no prefácio: “Resta-me agradecer aos beneméritos editores o esmero empregado na primorosa edição do Vocabulário; e por último tributar novos e bem merecidos louvores à Ex.ma Snrª. D. Amélia Pereira Sirven Aillaud Monteiro, que com a maior solicitude e provada competência se incumbiu, como já o fizera nas duas anteriores edições, da difícil e laboriosíssima revisão de toda a obra, da qual o autor apenas recebeu uma prova tipográfica final, que parcíssimas correções teve de sofrer, tam perfeito foi aquele trabalho, executado em curto prazo, e pelo qual me confesso gratíssimo, como é dever meu indeclinável e de inteira justiça.”

E note-se, para uma pessoa que deixara o seu país na meninice, passando a estar mergulhada noutra língua, durante muitos anos, Amélia mostrou dominar o português. Rever um documento essencial da língua portuguesa, como é o Vocabulário Ortográfico de Gonçalves Viana, exigia conhecimentos linguísticos bem afinados.

Quanto mundo nesta trajetória de vida que se iniciara em Lisboa, e marcou definitivamente o rumo de Amélia, ao sair do Entroncamento, de comboio, com destino a Paris. Não um mundo geográfico, mas literário.

Amélia Pereira Monteiro Aillaud morreu na sua residência em Lisboa, na rua de São Domingos à Lapa, em 1 de setembro de 1924.

A sua mãe Antónia, já muito idosa, ainda vivia, e continuava a residir na sua casa das Vaginhas, o pai já tinha falecido. Amélia sempre mantivera laços com a sua família. Eugénio Poitout, o sobrinho-neto que sobre ela escreveu, ainda a conheceu.

Há fotografias de Amélia, uma delas, de 1879, tinha ela 20 anos, com uma dedicatória afetuosa para seus pais. Está a dedicatória em francês, mas esta língua tinha começado a espalhar-se pela família. Emília, uma das irmãs de Amélia, era casada com um maquinista francês que viera para o Entroncamento, Eugène Alexis Poitout.

No funeral de Amélia, entre as pessoas presentes, estavam o ministro de Portugal em França e a esposa, o Dr. António Arroio, Dr. Caetano Beirão da Veiga, Pedro Joyce Dinis, Aquilino Ribeiro, Carlos Selvagem, Dinis Bordalo Pinheiro, e todos os empregados das livrarias Aillaud e Bertrand. Amélia fez quase todo o seu caminho de vida com os livros, e eles estiveram bem representados na sua morte.

Júlio Aillaud morreu em Paris, em 9 de setembro de 1927. O seu corpo foi trasladado para Lisboa em novembro seguinte.

Nota final: A investigação de documentos franceses, incluindo certidões de óbito e de casamento, e notícias de jornal, foi feita por Francine Fabrello.

PUB