A coletividade recreativa, ainda em atividade, cuja fundação é a mais antiga no Entroncamento, é o popular Parafuso, que também se chama Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911.

1911 é, só por si, um bom atestado de antiguidade, mais de um século de existência, mas testemunhos escritos e idóneos empurram o Parafuso ainda mais para trás, para o tempo da monarquia. É essa história antiga que eu pretendo contar, enquadrando-a no Entroncamento de então, e nas coletividades dessa época.

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Comecemos pela localidade, antes de 1911, uma aldeia de pouco casario espalhado por entre olivais, com aglomerados habitacionais junto à Estação dos Caminhos de Ferro, algumas casas na futura Rua Latino Coelho, uma outra fiada de casas na que veio a ser a Rua Sozzi, e onde mais tarde se instalou o clube União, o lugarejo das Vaginhas razoavelmente povoado, e casais dispersos.

 

A empresa maior empregadora era a mesma para a maioria da população, a Companhia dos Caminhos de Ferro. Tempos livres não haveria muitos, e a diversidade das ocupações não favorecia os pontos de encontro, mas havia, no calendário, dias de festa.

Dito assim, parece que seria difícil constituir grupos recreativos, fossem eles musicais, dramáticos, ou de outros interesses, mas há notícias de grupos de teatro, no Entroncamento do século XIX, o primeiro, ou dos primeiros, integrando um rapazinho, telegrafista na Companhia, que veio a ser um conhecido e grande ator, proprietário do teatro da Trindade, Tomás Taveira, antes disso um empregado ferroviário no Entroncamento dos anos setenta de novecentos.

Anos mais tarde, já na década de noventa, aparece-nos um teatro, inaugurado em 12 de setembro de 1893, de nome Tália, com um grupo de amadores. O ensaiador era Manuel Gonçalves da Silveira, chefe da estação ferroviária.

Estas pequenas notícias, encontradas a primeira num livro de Sousa Bastos (Carteira do Artista: Apontamentos para a História do Teatro Português e Brasileiro, Lisboa, 1898, pp. 22-23), e a segunda na imprensa regional (Jornal Torrejano n.º 465, 07-09-1893), mostram que a comunidade local, mesmo com a grande exiguidade de meios de que dispunha, dada a pouca idade do Entroncamento, se foi organizando para preencher os tempos livres, criando grupos de atividades culturais e recreativas.

Maria Madalena Lopes, no seu estudo Entroncamento, O Caminho de Ferro factor de urbanização: estudo de geografia humana (que quando foi publicado, em 1947, era a sua tese de licenciatura em Ciências Geográficas, hoje transposto para livro), conta que o mestre de obras Paolo Picciochi Sozzi, chegado ao Entroncamento no início dos anos oitenta de novecentos, construiu as casas da que veio a ser a segunda rua da localidade, rua Sozzi (depois Tenente-coronel Alfredo Pereira da Conceição), e também uma barraca para teatro, quem sabe se seria o Tália.

Quanto ao Parafuso, não sabemos se ele é da mesma época da associação Tália, final do século XIX, ou se da primeira década do século XX. O que é certo é que o Parafuso é mais antigo do que o Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911.

As fontes desta informação situam-se a dois níveis. Uma delas é o jornalista muito conhecido Eduardo O. P. Brito, que recorreu às memórias de um fundador. A outra é o dirigente do Parafuso, Pedro da Costa Neves, que no aniversário do clube, em 1952, recordou as suas origens.

O que Eduardo O. P. Brito escreveu, foi o seguinte:

Esta velha coletividade, ao contrário do que muitos leitores suporão, não foi fundada na data – 1.º de Outubro de 1911 – que serviu, afinal, para a sua designação. Nada disso. Pois, segundo um dos seus principais fundadores – o Sr. Manuel Ferreira Godinho, já há muito falecido –, nos declarou uma vez, quando foi implantada a República, o «Parafuso» já existia. Simplesmente, quando o Grupo conheceu (em 1 de Outubro de 1911) as suas (então) novas instalações, ou sejam, as que ainda hoje ocupa, é que então foi escolhido o seu nome oficial (chamemos-lhe assim), aproveitando, para o efeito, a referida data. E dizemos novas instalações, uma vez que as primeiras se situavam na casa onde hoje se encontra instalado o restaurante Vila Franca.” (O Entroncamento n.º 568, maio de 1980)

Aqui vemos a confirmação do que atrás foi dito, que o Parafuso já existia antes da implantação da República, e do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911. Convém, no entanto, esclarecer que estas “novas instalações” a que Eduardo Brito se refere, já não existem. Era um edifício de rés-do-chão, situado no lugar do atual, contíguo à antiga Farmácia Carvalho (inaugurada em 3 de maio de 1933), e constituído por algumas salas e um amplo salão, com palco, e camarins e bufete sob o palco. O salão destinava-se, sobretudo, a bailes, mas viu muito teatro, operetas, e até sessões de esclarecimento e propaganda, em determinadas épocas, projeção de filmes, e também lá se praticou desporto.

Mas voltemos ao grupo recreativo, antes da República, que ainda não tinha sede própria, e ao que disse o dirigente Pedro da Costa Neves, no aniversário da coletividade, em 1 de outubro de 1952:

Aberta a sessão, usou em primeiro lugar da palavra o Sr. Pedro da Costa Neves, que historiou a vida da coletividade lembrando os nomes de alguns dos fundadores do Grupo Recreio Musical, António Delgado, João da Silva Cabaço, João Figueiredo, Joaquim Natária, João Rosa, Amaro da Silva Monteiro, etc., o qual passou a ser conhecido pelo Parafuso.

Foi deste grupo que nasceu o Grupo Recreativo 1.º de Outubro, que definitivamente se instalou no prédio que hoje ocupa. Não esqueceu o orador o nome de João Nunes Ribeiro, a quem se deve a construção deste prédio.”

E já que se falou nos fundadores, divulga-se também os nomes dos sócios que, em outubro de 1952, tinham mais de 30 anos de assiduidade, pode ser que entre eles se encontrem alguns antepassados dos leitores: Gilberto da Guia, Diamantino Condeço, António Pedro Vicente, Francisco Condeço, Manuel Henriques, Manuel da Costa, Frutuoso Mendes, João Simões de Melo, Germano Pereira, João Batista Ferreira, Domingos Coelho Gomes, Eugénio Matos Clemente, José de Oliveira Amaro, Eugénio Rodrigues, António Jacinto Hortênsio, Francisco Jaques, Diamantino Grilo, José Simões, João Lopes Soares, João Figueiredo, Vítor da Silva Alfaro e António Carvalho.

Sabemos, agora, que o Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911 descende de um outro grupo anterior, o grupo Recreio Musical, que não estava oficializado, e era mais conhecido como Parafuso. Mas… de onde veio essa designação tão rara em nomes de coletividades, PARAFUSO?

Esqueçamos a história do “dá-me lá outro parafuso, que este tem a rosca moída”, que era a contada por Eduardo Brito, porque João Pereira, presidente da Direção do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911, em 1933, conta-a de outra maneira, certamente porque ele próprio a viveu, e ela estaria bem presente nas recordações dos mais antigos. Aliás, Manuel Ferreira Godinho, o informador de Eduardo Brito, não aparece aqui na lista dos fundadores, nem dos sócios com 30 anos de “militância”, porque se mudara para o União, que era o clube dos maquinistas e das elites do Entroncamento daqueles tempos.

Voltamos às memórias de João Pereira:

A fundação do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911, mercê do esforço dum punhado de rapazes, cheios de boa vontade, daquela época, há vinte e um anos, foi levada a efeito numa hora em que eu chamarei feliz.

Tendo tido a sua primeira sede na casa que é hoje o estabelecimento do sr. Francisco Cotafo Condesso, em que o palco para as récitas era armado em cima de caixotes vazios, ligados uns aos outros por meio de parafusos – daqui lhe veio o apelido “Parafuso” que, ainda hoje, conserva (…)” (Terras de Portugal, abril de 1933).

É esta a história dos primeiros tempos do Parafuso, e da sua adoção como alcunha, e tem mais razão de ser do que um parafuso de rosca moída. Os meios e o espaço seriam escassos, daí o recurso aos caixotes aparafusados uns aos outros, para servirem de palco, quando era necessário. O parafuso, esse objeto pequeno e utilíssimo, foi o esteio que permitiu à associação fazer e desmanchar, adaptar o espaço às necessidades, criar a magia e a ilusão do espetáculo com poucas coisas, caixotes e parafusos.

Enquanto isto acontecia, trabalhava-se para haver uma sede própria, e foi adquirido um terreno na mesma correnteza da rua. Só quando a sede ficou pronta, é que a coletividade se legalizou, com o nome do dia e ano em que se estava, 1.º de Outubro de 1911, que foi o da inauguração. Era a segunda sede, porque era o segundo espaço que ocupavam, mas era a primeira do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911. No lugar da sede anterior, instalou-se a casa de pasto de Francisco Cotafo Condesso, ou, no dizer popular, o Chico Condesso, casado com Micas Condesso, que ali estiveram durante uns anos.

No ano seguinte, 1912, apareceu, na Ilustração Portuguesa (n.º 336, 29-07-1912), uma fotografia da Orquestra e Rancho Flor da Mocidade, grupo do Entroncamento. Na publicação nada mais se diz sobre ele, apenas o nome a localidade. O facto de não existirem, no Entroncamento de então, que se saiba, outras coletividades recreativas, e de a sociedade Tália se ter desfeito, por divisões internas, leva-nos a pensar que este rancho poderia estar ligado ao Parafuso.

Na imagem referida, contam-se trezes instrumentistas de cordas e onze pares de dançarinos. Como dado histórico de interesse, refira-se a existência, em Coimbra, entre 1900 e o final da Grande Guerra, do Rancho Flor da Mocidade, que criou e popularizou canções de muito sucesso, algumas delas ainda hoje no repertório de guitarristas de Coimbra. Segundo a fonte consultada na internet (Memória do Rancho Flor da Mocidade), o grupo coimbrão serviu de modelo a ranchos criados em muitos concelhos da Beira Litoral. A similitude no nome leva-nos a pensar que também inspirou o do Entroncamento, o que é plausível, dada a itinerância dos ferroviários.

Como em todas as coletividades recreativas daquele tempo, os bailes eram das atividades mais atrativas e rendosas. Na sociedade de então, e num Entroncamento com poucas distrações, eles proporcionavam o convívio, a fruição das músicas em voga, a dança, a recriação de alguma pompa com as eleições de rainhas e damas de honor, e eram o ponto de encontro das famílias ferroviárias, das amizades e dos amores.

Para todos, o nome da coletividade era PARAFUSO, o tal que já vinha desde os tempos mais antigos. O outro, mais extenso de dizer e de escrever, era reservado às situações oficiais.

A associação tinha como emblema ou símbolo uma lira, com duas trombetas cruzadas, sendo a lira muito comum como emblema das associações culturais e recreativas fundadas durante a Primeira República. Ela simbolizava a ligação à música, mas também a harmonia, valor essencial na constituição e funcionamento das coletividades, e que se traduzia na palavra União ou Unido, presente em três coletividades do Entroncamento, União Futebol Entroncamento, 11 Unidos Futebol Clube, e Grupo Musical União Vaginhense, este ligado a uma outra coletividade histórica e também dos tempos republicanos, fundada em 1916, o Grupo Recreativo O Ramalhete das Vaginhas.

A lira, como emblema do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911, durou por bastantes anos, coabitando, por vezes, com a imagem do parafuso, em tons de verde. Em 1975, ainda a lira figurava nos cartões dos sócios, até que, nos anos oitenta, deu lugar, finalmente, ao símbolo que acompanhou a coletividade desde os seus tempos primeiros.

Há, no Arquivo Municipal do Entroncamento, um ofício do Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911, datado de 3 de outubro de 1951, que contém todas as suas identificações: à esquerda, a imagem do um parafuso, sempre a mesma, com a menção vulgo, no cabeçalho o nome da coletividade, e sobre este, a lira.

Também aparece sempre, sob o nome da coletividade, a designação “Filiado na Federação das Sociedades de Educação e Recreio”. Esta Federação, criada em 1924, enquadrou, defendeu e promoveu as coletividades independentes. Em 1975, ainda está presente nos cartões dos sócios.

Neste mundo das coletividades entroncamentenses dos anos trinta e quarenta, é interessante verificar como elas viviam o crescimento da então aldeia e depois vila. Quando da criação da vila do Entroncamento, por decreto de 21 de dezembro de 1932, na ata relativa a esse acontecimento, o presidente da Junta de Freguesia, José Duarte Coelho, faz vários agradecimentos, começando pelas entidades oficiais, e passando depois para as coletividades e pessoas. As coletividades são as que enviaram ofícios de saudações, em primeiro lugar o Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911, depois o Grupo de Escoteiros 84, e em terceiro lugar o Grupo de Instrução Musical Alberto Codina, este último mais conhecido como o GIMAC.

Em 24 de novembro de 1945, quando foi criado o concelho do Entroncamento, novamente o Grupo Recreativo 1.º de Outubro se manifestou. Escreveu o presidente da Direção, Pedro da Costa Neves, numa carta dirigida ao presidente da Junta de Freguesia: “Ex.mo Snr. Interpretando a satisfação da massa associativa desta agremiação pela elevação a concelho, da área ocupada pela freguesia do Entroncamento, respeitosamente apresento a V. Exa as melhores Felicitações. O povo do Entroncamento sente-se honrado por ter à frente do destino da sua Terra, um homem que se chama José Duarte Coelho.”

Em 1945, o Entroncamento crescera bastante desde o começo do século, mas só em tamanho, em ruas e em casas. O que seriam da cultura, da música, do teatro, do desporto, nesta terra nascida com o caminho de ferro, se não fossem as coletividades e a sua dedicação?

O Estado reconhecia essa função cultural e de ocupação dos tempos livres dos trabalhadores, mas impunha as suas regras. Quando havia eleições nas coletividades, a partir de uma certa altura, que não é possível precisar, a autoridade começou a estava presente. E embora os eleitos fossem escolha democrática, escolhidos pelos sócios, as listas tinham de ser aprovadas superiormente.

Num ofício do arquivo local, de 1 de fevereiro de 1949, o seu autor, que se assina Manuel das Neves, 1.º Subchefe da Polícia de Segurança Pública, Esquadra do Entroncamento, informa o presidente da Câmara Municipal do Entroncamento de que, no dia 29 do corrente (ele queria referir-se a 29 de janeiro), tinha decorrido “harmoniosamente” a Assembleia Geral do União Futebol Entroncamento.

Numa notícia de 29 de fevereiro de 1959, no jornal O Entroncamento, lê-se:

Os clubes da nossa terra já realizaram as suas assembleias gerais.

No popular “Parafuso” todos os corpos gerentes foram reconduzidos, o que demonstra o aplauso pelo seu trabalho. À frente da direção continua o sr. João Fernando Pereira da Guia, nosso prezado assinante.

No União, houve pequenas alterações na direção e conselho fiscal, cujos mandatos só terminam este ano.

No Ferroviário o novo elenco é o seguinte (…)

Todos os corpos eleitos aguardam autorização superior para tomarem posse das suas funções. (O Entroncamento n.º 216, 29-02-1956)

Os tempos eram assim.

O Parafuso teve uma biblioteca, a que eu recorria, nos meus tempos de estudante. Na velha sede, ela estava na primeira sala, à esquerda, quando se entrava. Quem me atendia era o sr. Caixinha. Nesse tempo, o Entroncamento não tinha biblioteca municipal, a primeira veio em 1961, era a Biblioteca Itinerante 29 da Fundação Gulbenkian, e a Biblioteca Pública só foi inaugurada em 1965, também com a ajuda da Gulbenkian.

Nas imagens que se anexam, está o Parafuso do tempo da primeira sede em edifício próprio, e a rua 5 de Outubro, que foi sempre a sua morada.

Num postal ilustrado de 1930, da coleção editada pelo fotógrafo João Santos, coleção essa existente na Biblioteca Nacional, a rua 5 de Outubro aparece com pavimento muito negligenciado. O primeiro imóvel à direita, que era, então, o estabelecimento de José Mateus Neves da Costa, o Zé da Loja, foi depois do casal Torres Lopes; a seguir a este, uma casa de rés-do-chão que pertenceria a António Mendes, eminente republicano quando aquele regime esteve em vigor; e o segundo prédio de rés-do-chão é o Parafuso, com um grupo de indivíduos junto à sua parede lateral.

A fotografia que mostra a fachada do Parafuso, é mais recente, com sinais de alguma modernidade nas portas de alumínio, mas a fachada é a mesma de origem. A porta larga e as duas janelas que a ladeiam correspondem ao salão. A porta estreita era a entrada para o corredor de acesso ao salão e a várias dependências.

A terceira foto, da autoria de Walter Reis, mostra o lado oposto ao Parafuso, e este assinalável apenas pelo seu mastro da bandeira. No lugar do paredão está hoje a Caixa Geral de Depósitos. A seguir a ele, um prédio de primeiro andar que foi residência das famílias Reis e Carloto, e o edifício dos CTT, inaugurado em setembro de 1942.

Das origens do velho Parafuso, só nos resta a Casa Vila Franca, que devia ser elevada à categoria de Bem com Interesse Municipal, pela sua antiguidade e história, e pela continuidade, porque nunca fechou.

Desde os velhos tempos do Recreio Musical, que foi depois a casa de pasto de Chico Condesso, passaram por lá, e estiveram cerca de trinta anos, Joaquim Inácio e Madalena Belo Melro, pais de uma menina, Isabel, que criou uma lebrezinha a biberão. Quem se lembra desse fenómeno do Entroncamento, popularizado por Eduardo Brito?

Os atuais proprietários Maria da Conceição dos Santos Marques, a Dona Ção, e Arlindo Teixeira Marques deram continuidade ao negócio de casa de pasto e à vida daquele recinto, a partir de 1986.

Já não há, no Entroncamento, mais nenhum lugar assim, aberto à comunidade há mais de um século, sem ser deitado abaixo, e como casa de pasto, outra raridade. Mérito de todos os que por lá passaram, e dos que estão.

Que a MEMÓRIA não se perca!

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