Ouvimos com frequência dizer, muito poeticamente, que os olhos são as janelas da alma. Pretende-se com isso afirmar que, ao contrário dos cerca de vinte músculos que uma pessoa tem na face, os olhos não conseguem dissimular quem se é de verdade. O que aliás bate certo com o provérbio popular, “quem vê caras, não vê corações”. E também com aquela máxima que avisa que “as aparências iludem”. E ainda com a outra que nos alerta a “não julgar um livro pela capa”. Claro que quem diz os olhos no fundo o que quer dizer é o olhar. O olhar, ao contrário dos olhos, não é físico. Dos olhos diz-se que são castanhos, verdes ou azuis, grandes ou pequenos, arredondados, amendoados ou orientais. Mas o olhar, bem diferentemente, reporta-se a algo transcendental, ao mistério da identidade. É talvez sinal dessa secreta alma imortal que habita o corpo mortal de cada um.
Alguns atribuem a origem desta ideia dos olhos como janelas ao escritor americano do século dezanove Edgar Allan Poe e ao seu conto gótico A Queda da Casa de Usher, em que o protagonista, após chegar de visita à soturna mansão do seu amigo de infância, Roderick Usher, se refere às janelas da dita mansão fazendo uso da expressão “eye-like windows”, ou seja, “janelas como olhos”. Curioso que ele menciona janelas como olhos e não olhos como janelas, mas o que se popularizou foi precisamente esta última ideia. Ora a mansão dos Usher é tão lúgubre e desoladora que Allan Poe usa mesmo a expressão “vacant eye-like windows”, ou seja, “janelas como olhos vazios”. E como é sabido, aquele que exibe um olhar vazio não se encontra bem, está ausente de si mesmo, alucinado, em estado de choque ou, possivelmente, sob o efeito de alguma substância.
As aparências podem iludir, já o dissemos, e decerto iludem muitas vezes, mas neste conto isso não sucede. Pois o que o protagonista, que partilha com o leitor as impressões funestas da sua visita ao amigo, vai encontrar no interior da mansão combina realmente com o sombrio semblante da casa, que por sua vez combina na perfeição com o cenário em que esta se insere, a fazer lembrar uma paisagem de pesadelo em que pontuam maus presságios, árvores tétricas e um lago fantasmagórico.
Até que ponto a obra combina com o autor, não podemos dizer, mas o que é facto é que o escritor do mistério e do fantástico, autor do famoso poema nocturno O Corvo, que Fernando Pessoa traduziu, teve um fim de vida prematuro e dramático que permanece ainda hoje por explicar. O que deu azo, ao longo dos anos, às mais variadas teorias. Morreu em 1849, aos quarenta anos, internado no Washington College Hospital, para onde foi levado pelo amigo Joseph Evans Snodgrass, depois de ter sido encontrado quatro dias antes numa sarjeta, desfigurado e delirante, vestindo umas roupas andrajosas que não seriam as suas. Do nascimento à morte, Poe conheceu uma existência conturbada, repleta de adversidades e sofrimentos, começando logo com o abandono da família pelo pai quando ele tinha um ano e pela morte da mãe cerca de um ano depois. Mais tarde passou por outros lutos, por dificuldades financeiras, pelo alcoolismo e pela depressão, sendo que o seu fim, tal como a vida, foi digno de pertencer a um dos seus contos de terror.
A Biblioteca e Museu Morgan, em Nova Iorque, promoveu em 2013 uma mostra de objectos pessoais, como manuscritos e cartas, daquele que foi o primeiro americano a sobreviver da escrita. A exposição intitulou-se Terror of the soul. Terror da alma.
Snodgrass terá dito mais tarde que, quando o encontrou, o autor do conto O Gato Preto apresentava o rosto transfigurado, e que o seu antes “soulful eye”, literalmente “olhar com alma”, a querer significar “expressivo”, apresentava-se agora “lusterless and vacant”, ou seja, sem “brilho e vazio”. O tal olhar vazio de que falávamos mais atrás, a propósito de A Queda da Casa de Usher e das janelas da alma.
Conta-se que as suas últimas palavras terão sido “Lord, please, help my poor soul”, em português, “Senhor, por favor, ajude a minha pobre alma”. Será que o Senhor ajudou, como pedido, a alma de Poe? E por onde andará ela agora, quase dois séculos depois, essa alma tão criativa? A escrever histórias assustadoras por outras paragens? Esperemos que sim. E paz à sua alma.