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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Há muito tempo que eu já não frequentava as bancadas em torno dos sagrados retângulos verdes onde uns tipos habitualmente ágeis e bem encorpados correm atrás de um objeto esférico na prática da mais gloriosa alienação pública dos tempos modernos, vulgo futebol, na qual também me confesso e comungo com adequada inconsciência, na versão mais tecnológica em ecrã plano, e já não sei se por feitio cínico, costume incorrigível ou pura atração para o sofrimento clubístico. Lembro-me de que o último jogo que presenciei ao vivo foi um sofrível Académica-Sporting, ainda jogava o sibilino cairuense Liedson da Silva Muniz, O Levezinho, e, para ser franco, nem os dois golos do prélio eu vi, apesar de estar lá para isso. Também não houve direito a repetição dos lances, estranhei, um estranho defeito dos promotores destes jogos, igual ao hábito de não oferecerem binóculos (ou ao menos lupas). E como perto do lugar onde me sentei decorreram cenas pouco olímpicas entre os adeptos, e logo os dos meus dois clubes eleitos, para as quais eu nem paguei para ter que ver, decidi a partir daí, e pensando fazer bem, resguardar-me destas tristes ocorrências, e trocá-los pelos mais inócuos e liofilizados que as televisões transmitem.

Isto pensava eu até à última semana, em plena época pascal, quando, calcorreando a minha senda habitual de pé posto por um parque urbano, interrompida por mais umas indecifráveis e sempre inoportunas obras de reabilitação de qualquer coisa, e ao pretender um atalho alternativo, acabei entre as bancadas dum campo da bola. Não só este não tinha saída óbvia, como fiquei refém do início de um jogo de juniores entre o Benfica dessa cidade beirã (faz-me sempre um pouco de espécie ver uma equipa com um nome tão exaltante e emblema tão destemido vestir uns equipamentos tão pardos e abúlicos que não sei de onde lhes poderá vir a inspiração…) e os visitantes que trajavam com soberba à Barcelona.

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Com uma claque de mais de uma centena e meia de pais, mães, tios, primas e aguerridas namoradas, os adeptos deste Benfica local, recebiam com indiferença (o mais requintado ódio que se pode oferecer no futebol) o séquito visitante, menos numeroso, mas não menos belicoso, que povoou logo toda a zona dos portões, impossibilitando a saída de quem quer que fosse do estádio. Era o meu caso. E, perante os factos, se tudo conspirava para que eu, depois de entrar naquela gaiola, dela já não pudesse sair, fiquei retido, e decidi não contrariar o destino, talvez todas aquelas contrariedades tivessem um significado celestial, um sentido obscuro, algum propósito mais oculto, sentei-me e fiquei… Quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos, mas valeu a pena. O que eu aprendi!…

Ao contrário de muita gente, que do futebol a melhor opinião que tem é a de que é uma extravagância inútil, parva e aberrante, eu ainda mantenho a ideia romântica de que, além disso tudo, é uma arte que deixa transparecer muito do que é a sociedade, sobretudo se falarmos do que há nela de mais atávico, insolente e banal, que me desculpem os políticos, valentes e obstinados rivais em todos esses predicados. E um facto interessante e digno de nota é que só agora, ao fim destes mais de dez anos de abstinência destes circos do chuto na bola, me apercebi de que o país se converteu num estrénuo viveiro não só de excelsos praticantes, como de exaltados treinadores de futebol, como também de árbitros autocertificados, ou pelo menos de finos e perspicazes comentadores das mais leves e subtis falhas de arbitragem. Tendo, tanto os treinadores argutos e já com idade para darem melhores exemplos aos netos que levavam pela mão, como os capciosos árbitros, a quem felizmente ninguém emprestará uma farda negra, esta estranha singularidade comum: todas as falhas dos apitadores prejudicaram sempre os seus estimados emblemas. Ali, todos davam ordens tanto a defesas, como aos médios e aos avançados, e com tantos decibéis o faziam que os pobres praticantes dificilmente poderiam escutar o que o técnico genuíno, sentado e com carteira profissional tivesse para dizer…

̶  Limpa a bola, Nhuca!…

̶  Vamos lá, Simão, anda corre sacana…

̶  Vai, vai, Miguel, olha aí…

̶  Disputa-me essa bola, Ruca, caramba, ele não pode andar a jogar sozinho e a fazer puco de ti, dá-lhe nesse galego, carago…

̶  Boa, Zé Maradona!…, gritava um tipo com aspeto bastante bastardo, dando ao rapaz um apelido que só poderia ser por ironia ou maldade, pois ele não tinha um pé esquerdo, mas dois, três ou quatro, tanta a sua azelhice…, ao ponto de, nas melhores sortidas, até se fintava a si próprio.

− Juntem as linhas, pá!, evitem as diagonais deles… − bradava uma outra individualidade com barba de três dias e aspeto não só de intelectual como de putativo treinador. Aqui confesso que há já expressões do futebolês que me escapam, mas que devem ser profundas. De resto, com uma ausência de tantos anos das bancadas do que é que eu estava à espera? E se o campo tem retângulos, círculos, semicírculos e até quartos de círculo, haver linhas e diagonais faz tudo muito sentido. É tudo uma questão de geometria e de enganar os árbitros…

Com esta amostra na bancada central, não me espanto que continuemos a exportar treinadores e comecem a chegar já encomendas pedindo árbitros. Também deu para entender, pelo vernáculo mais ordinário que irradiava sonoramente desta bancada central, como devem ter diminuído a moral e os bons costumes da nação nestes meus dez anos de ausência. Eram impropérios bafejando a maioria dos intervenientes na partida, como a autoritária equipa de arbitragem − e em particular o enfezado auxiliar, que estava mais perto de os ouvir, e o codicioso avançado do team junior forasteiro, um tal Chony, a quem, se as alcunhas aleijassem, precisava, logo ali, de um helicóptero que o levasse rapidamente às urgências do hospital distrital. De resto, era mesmo um sonoro coro feminino de donzelas já quarentonas, mas de timbres ainda imaculadamente esganiçados e expressões também imaculadamente impublicáveis (mas que, asseguro, eram capazes de fazer corar de vergonha uma caserna interna de fuzileiros), quem mais animava a bancada, sobretudo quando o jogo se empastelva a meio campo e as bolas subiam mais alto que o foguetório de passagem de ano. De resto, este mavioso grupo coral de falsetes e de timbres agudos, de decotes e saias bem reveladoras da grave crise económica em que o país continua mergulhado, era tão capaz de partir as vidraças mais próximas como alguma bola aliviada para fora por um defesa mais canhestro. E, tanto se mostravam as donzelas aptas para cantar hinos inspiradores ao seu clube, como podiam a seguir arruinar a boa reputação de toda a família de algum esforçado defesa que fizesse cair um tal Nhuca, vedeta da equipa da casa e ator sempre pronto para cair com aparato assim que sentisse um sopro de uma respiração adversária nas costas, em particular se estivesse de visita à grande área contrária. Portanto, por aqui, apercebi-me também do que evoluiu a emancipação feminina na assistência a jogos nestes mais de dez anos de hiato meu, embora, devo confessar, esperava que essa evolução não precisasse de tão exuberantes ostentações.

O jogo valeu tanto pelo espetáculo em si, com os praticantes a procurarem mimetizar o melhor que sabiam as hábeis jogadas observadas entre as vedetas dos clubes de top (compensando em abnegação o que escasseava em arte), e, verdade, nunca vi tanta alegria por introduzir uma simples bola nas redes do adversário. Cada golo do Benfica do burgo era uma espécie de epifania à custa de umas enormes e comprometedoras abébias da defesa contrária, guarda-redes incluído. Se os jogadores do Benfica entravam em epifania pelo cometimento, na bancada a euforia era total e o rico vernáculo contrastava agora com a bênção dos vencedores. Os jogadores saltavam para as bancadas e voavam por cima das namoradas e companheiras, numa comunhão contagiante e quase bíblica. Caramba, afinal não é preciso muito, para ficarmos todos tão felizes. Vou ter de reanalisar aquela ideia insensata de não voltar a frequentar estádios de futebol, aquilo é uma ação de graças!

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