Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

É já no próximo dia 20 deste mês que o Entroncamento comemora os 30 anos da sua elevação a cidade, coroando o caso, que julgo singular, de, no mesmo século, um pequeno burgo territorial se ter tornado freguesia (1926), vila (1932), município (1945) e cidade (1991).

É verdade que foi ao longo do século XX que o Entroncamento se reforçou como comunidade e centro urbano de excelência em alguns setores da atividade económica e social, mas na realidade a sua matriz como urbe ficou praticamente determinada na segunda metade do século XIX. E, neste ponto, valerá a pena analisar as circunstâncias que levaram à escolha do local onde assentariam alicerces as primeiras habitações e lojas do nosso burgo ferroviário. É certo que houve o seu quê de aleatório na escolha, mas a conjugação de objetivos políticos e interesses económicos, aliados aos condicionalismos físicos e geográficos e às limitações financeiras, tornaram o sítio do Entroncamento da Ponte da Pedra não só como o lugar inevitável da construção de uma futura estação e centro ferroviário, como também o lugar geométrico onde se maximizavam todas as vantagens e se reduziam as custos devidos ao lançamento da rede de caminho de ferro pelo Reino de Portugal. Entre o acaso, as circunstâncias e as necessidades, o Entroncamento tornou-se no lugar natural para se tornar nesse centro nervoso e nevrálgico do novo mundo anunciado dos comboios portugueses.

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Na equação preliminar à construção das ferrovias no país, já defendidas pelos políticos mais progressistas e liberais, havia que considerar um triplo objetivo estratégico: a ligação de Lisboa ao Porto, as duas principais cidades do reino, por um meio de transporte rápido, cómodo e económico; a união ferroviária com a Espanha e a Europa (não estando ainda definido o ponto da fronteira em que as duas linhas se encontrariam, mas a raia entre Elvas e Badajoz ganhava já um certo consenso); e o desenvolvimento da Beira Interior e do Alto Alentejo, oferecendo-lhes um meio de transporte estimulante, eficiente e capaz.

Ao partir de Lisboa, rumo ao Porto, e com a preocupação de se internalizar para o apoio ferroviário ao Centro Interior do país, a linha procurou acompanhar a margem direita do Tejo, já que a ausência de serranias e de estrangulamentos orográficos facilitava a construção da via e a penetração fácil dos comboios na direção nordeste. Esta orientação possibilitava responder aos três objetivos enunciados num único troço de caminho de ferro. Foi nesta perspetiva regeneradora que o comboio chegou inicialmente ao Carregado e assim se prosseguiu, acompanhando de perto a margem do rio e a sua orientação. Esta linha, assim delineada, fazia a aproximação simultânea ao Porto, a Espanha e ao Interior, sem necessidade de grandes e custosas obras, como pontes, túneis ou grandes movimentações de terras, exceto já na zona de Santarém. Na verdade, esta opção natural seria reforçada por outro aspeto complementar: saído de Lisboa, e logo a norte do Tejo, a linha férrea encontraria uma barreira dissuasora logo na Serra de Montejunto, e, pouco depois, nas Serras de Aire e Candeeiros. Seguir confortavelmente e numa várzea verdejante e plana junto ao leito do Tejo era, portanto, o seu destino natural e lógico. Este tronco comum da ferrovia permitia uma poupança considerável à Fazenda do Reino, cada quilómetro feito valeria por três. E era importante prolongá-lo até onde fosse aceitável e possível…

Como protagonista deste progresso estiveram indelevelmente Fontes Pereira de Melo, e o fontismo, a sua filosofia positivista de melhoramentos materiais para o país, em particular nos transportes, seguindo o lema do engenheiro e político liberal francês Michel Chevalier segundo a qual “o Governo mais económico não é o que gasta menos gasta, mas o que gasta melhor”. E esta ideia inteligente do tronco comum ilustrava-o em absoluto. Mas é preciso também salientar o papel de D. José de Salamanca y Mayol, um aventureiro político espanhol, empresário abastado e empreendedor visionário, experiente e tecnicamente muito bem preparado para o mundo dos caminhos de ferro. José de Salamanca teve um contributo decisivo para dar agilidade ao fontismo, no que aos comboios dizia respeito, e, de certo modo, foi ele, com todas as vicissitudes que ultrapassou, o criador do Entroncamento.

Ao ser o principal responsável pelas grandes decisões sobre as linhas do Norte e do Leste, foi José de Salamanca quem decidiu o local preciso para o fim do tronco comum – o ponto em que era necessária uma bifurcação, com uma linha a dirigir-se então para o Porto e a outra partindo para Espanha. O Entroncamento foi o local crítico e certo dessa filosofia, a zona até onde era possível maximizar os proveitos do tronco comum, avançando para todos os alvos em simultâneo e a baixo custo. A partir daqui já não era viável manter os três objetivos em harmonia e conciliados numa só linha. Avançando para uns, a via afastava-se dos outros. Era a altura da separação, e, além disso, a linha aproximava-se também do Zêzere. E era preciso tomar decisões de investimento antes de lá chegar…

É que era necessário atravessar o Tejo para sul, rumo a Elvas /Badajoz, quando pareceu claro que a alternativa da ligação a Espanha por Monfortinho, Coria e Plasencia era desinteressante para o Governo espanhol. E, sendo assim, era natural que a transposição ferroviária do Tejo se fizesse antes de Constância, evitando assim os custos da construção de uma outra ponte sobre o Zêzere. Daí a escolha da Praia do Ribatejo para alcançar a outra margem. Em relação à localização mais detalhada e minuciosa do “entroncamento”, há que recorrer à topografia regional e ao papel do planalto da Atalaia que se levanta a nordeste da cidade ferroviária. Foi a razão pela qual se deu a disjunção das linhas: contornando-o pelo sul seguiria a Linha do Leste, e pelo lado poente a Linha do Norte. Estava criado o Entroncamento, uma cidade fundacional da ferrovia, assente numa antiga zona pantanosa, e para cuja criação também contribuiu a opinião dos “40 senadores” da Barquinha que rejeitaram o comboio pela ameaça que ele já prenunciava em relação aos interesses e aos negócios das embarcações no Tejo.

Anunciava-se uma nova era, outra ficava pelo caminho, e o Entroncamento parecia já trazer o anúncio de uma nova sociedade fundada pelos caminhos de ferro.

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