Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Nos últimos dias a opinião publicada, lida, vista e escutada no país foi cilindrada com mais uma das pandemias de disparates, lugares comuns e insanidades de uma imaginação voraz sobre os rankings das escolas em 2020, como se de uma feira anual de vaidades se tratasse. São ideias que me fazem suspeitar que os quistos provocados pelo vírus estão a produzir lesões mentais que vão muito para além do que inicialmente se supôs. E é claro que, para além dos novos disparates emitidos, outros voltaram a replicar opiniões antigas, fosse por inércia mental ou, pior, por má-fé. É que mais parecem seguir um guião ideológico, com a agravante de permanecerem cegas às razões e fundamentos que, ano após ano, refutam o guião e explicam porquê.

Um exemplo do que pretendo dizer é o de se querer comparar o desempenho revelado por colégios e escolas privadas (que revelam mundos de muito poder, fausto, privilégios económicos, sociais e culturais, e com toda a espiritualidade do capitalismo) com as escolas públicas. E, mesmo nestas, comparar as que se situam em meios urbanos estáveis e estimulantes, que resistem como podem ao desgaste da classe média, com outras, que acolhem os jovens problemáticos provenientes das muitas minorias proscritas (embora oficialmente isso não seja verdade) e deserdadas dos arredores empobrecidos e decadentes à volta dos polos económicos de Lisboa e do Porto. E, em relação às escolas dos meios rurais e interiores do país, isso hoje é mais um exercício de imaginação. Já são muito poucas, e as que resistem, não vão aguentar por muito tempo o plano inclinado instalado, que continua a levar tudo das serras do interior para o litoral.

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O problema da Educação em Portugal não se pode revelar nos rankings, que só evidenciam as assimetrias económicas e sociais crescentes em Portugal, e que a globalização tem vindo a acentuar. O grande caso da Educação no país não está em colocar umas escolas em confronto com outras para, por puro voyeurismo, ficar a contemplar quais as que ficaram umas décimas de unidade acima ou umas centésimas abaixo. No fundo, a sua autonomia é muito limitada (apesar de nunca se ter falado tanto de autonomia escolar, que só serve para resolver as situações difíceis e que o Ministério da Educação preferia que não existissem, delegando a sua resolução às escolas), o grande problema da Educação está relacionado com a hiperatividade legislativa dos últimos Governos da nação, a começar pelos desmandos da pseudopedagogia democrática de José Sócrates e associados. A verborreia discursiva e a incontinência verbal plácida que nestes últimos têm sido produzidos, e que tiveram em Lurdes Rodrigues, Nuno Crato e Tiago Brandão rouxinóis condignos e exaltantes, podiam ter como epílogo o céu azul de um mundo novo e admirável. Mas tiveram, no mínimo, um problema: confundiram ideias destemperadas e complicadotas com a realidade, que normalmente é pouco dada a preocupar-se com utopias de catecismo.

A voluntariedade legislativa e a abnegação criativa das governanças que têm conduzido o leme da Educação neste milénio são emocionantes. Ali, naquele mundo que ergueu a bandeira de vontades igualitárias à força, ninguém se poupou a esforços para legislar, decretar, despachar, regulamentar, projetar, planificar, modular e revolucionar de alto a baixo todo o sistema educativo e a lei de bases existente. Até aceito que as intenções tenham sido generosas, mas os resultados foram deploráveis. O que os gurus da Educação, que não raro andaram a navegar em Z, consoante as modas das novas correntes pedagógicas americanas, do caso de estudo finlandês ou do ensino dual da Alemanha, criaram em Portugal foi um labirinto legislativo inaceitável e, em última instância, uma teia de despachos, normativos e circulares tão sinistra, confusa e ininteligível, que acabaram por imobilizar ou anestesiar quem nela se viu envolvido.

É incrível o ritmo e a vertigem alucinante em que esses gurus, que tiveram um dia uma visão, se deixaram viciar, com as leis a terem o tempo de vida de uma nuvem, e as convicções a durarem o período de tempo entre dois cafés que dois sábios diferentes lhes ofereceram ao balcão de um snack-bar. E assim fizeram leis de ideias tão benévolas como a flexibilidade curricular, a igualdade de oportunidades para todos, as medidas de integração e inclusão, os desafios do futuro, a adaptação da escola ao século XXI, a criação de modelos de ensino mais apelativos e a criação de bons ambientes de aprendizagem com um ensino focado nos alunos. Mas, como é possível este ensino focado em cada aluno, com 30 alunos numa turma e 45 minutos pela frente, que os mesmos sábios criaram. Estas ideias, generosas, se antes não fossem absurdas, bizarras e irresponsáveis, tiveram quatro efeitos reais. Não resolveram os problemas concretos e profundos do insucesso educativo, deram ares e transmitiram para a sociedade que ça va bien, mas só o ia por decreto, aumentaram o sofrimento dos professores, que deixaram de ver o ensino como uma missão para ser um horário a cumprir de reuniões e de preenchimento de um incontável número de atas, matrizes, relatórios, grelhas em papel e plataformas e servidores da Internet e, por fim, transformaram as escolas e as aprendizagens em lugares sombrios, deprimentes e adoentados. À profissão de docente, com toda a nobreza, sentido de vida e de vocação, e pilar de qualquer sociedade que se preza, retiraram quase tudo, a começar pela autoridade natural, humana e científica que a sociedade também naturalmente lhe outorga, mas os visionários têm alienado e desprezado. E os professores carregaram esse vazio com um fardo de  burocracias esgotantes e numa coreografia de procedimentos completamente bizarra e kafkiana.

O que estes fanáticos do eduquês geraram nas escolas foi um ambiente de inacreditável irresponsabilidade, de facilitismo e de tontarias fora de qualquer sentido da realidade. Com eles a ditar, os alunos nunca irão experimentar o prazer de superar dificuldades, de cultivar o prazer do esforço e de enfrentar desafios sérios ou persistir perante problemas mais complexos, ou de irem mais além… A questão é que a sociedade é complicada (e cada vez mais), e a escola não os está a preparar para isso, colocando escadas rolantes e passadeiras de veludo onde devia haver esforço e tenacidade. Mas, como eles, os devotos do eduquês, estão instalados e almofadados em gabinetes distantes das detonações dos seus dislates insanos, nunca se vão aperceber disso, nem sequer vão procurar saber, porque antes da hecatombe vêm as suas ideias e os seus dogmas.

A verdade de tudo isto passa também pelo Princípio de Pareto, igualmente conhecida por lei dos 80/20, baseada em observações realizadas pelo sociólogo italiano Vilfredo Pareto e que é aplicável a muitos mundos, e que tem algo de incompreensível, mas verdadeiro, em muitas situações. Não tem um enunciado formal, mas ele entende-se logo com a reunião de alguns exemplos: 80 por cento da riqueza de um país está nas mãos de 20 por cento dos seus cidadãos; 80 por cento da poluição mundial é causada por 20 por cento dos países; ou  20 por cento das pessoas de um país possuem 80 por cento das suas terras…

Na educação também haverá as suas implicações: 80 por cento das notas mais altas são obtidas por 20 por cento dos alunos; ou 80 por cento dos lugares mais altos dos rankings são obtidos por 20 por cento de certos tipos de escolas. Irei acrescentar outro exemplo numa versão que não está testada, nem nunca estará, e por isso nada tem de científico, apesar de eu acreditar que é verdade: é que 80 por cento dos trabalhos dos professores nas escolas e em casa são consumidos em burocracias inúteis, e só 20 por cento aproveitam verdadeiramente aos alunos. Mas a culpa não é deles, antes pelo contrário. Foi nisto que deu tanta legislação e tontaria…

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