
Completam-se já este ano, em 11 de setembro, duas décadas sobre os sinistros ataques da igualmente sinistra organização islâmica fundamentalista Al-Qaeda que abateram com dois aviões comerciais as Torres Gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, tendo mais outros aviões sido ainda despenhados em território norte-americano, e morrendo de imediato um total de quase três mil pessoas. A partir dessa data o mundo nunca mais foi igual. O pó quente que ficou suspenso no ar em torno das ruínas do World Trade Center marcou o fim de uma era. E a ela sucedeu uma nova civilização, um novo mundo, vigiado, controlado, inseguro, abdicando voluntariamente da sua liberdade e enchendo-a de quistos e paranoias.
Em finais de 2008, com epicentro igualmente na Big Apple, de magnitude máxima e com réplicas consideráveis a repercutir-se por todo o mundo nos anos seguintes, ocorreu o sismo financeiro do subprime, um complexo esquema financeiro de empréstimos hipotecários de muito alto risco, que os economistas definiram como um “esquema Ponzi”, mas o cidadão comum prefere chamar, mais em prosa, de vigarice, fraude, batota ou as três em simultâneo. O sistema, baseado em títulos imobiliários, muita ganância e pouco carácter, esteve na origem de um efeito dominó global que deixou metade das pessoas dos cinco continentes do planeta consideravelmente mais pobres do que eram anteriormente. Bernie Madoff foi o sociopata que imaginou esta fábrica virtual de ganhar biliões e arruinar bancos, empresas, nações e muita gente, que a seguir desabou como um castelo de cartas. Ele próprio acabou por ser condenado a 150 anos de prisão (nos EUA não é possível mais, mas deve chegar), agora é respeitado pelos outros detidos (isto dá que pensar…) e anda a perguntar-se como é que, como um homem de família, como ele, pôde ter feito tanto mal à Humanidade. Além das tragédias semeadas, com pessoas que sucessivamente perderam o emprego, as casas, as famílias e o tino, a crise financeira do subprime trouxe uma enorme falta de confiança no sistema financeiro. E o cidadão comum nunca mais terá confiança nalguma estabilidade das poupanças que obteve de uma vida de trabalho.
Há menos tempo, pouco mais de um ano, com alegada origem num exótico mercado da cidade chinesa de Wuhan, e por motivos que jamais serão devidamente conhecidos porque ou já não é possível, ou nunca foi desejável, começou a expandir-se pelo planeta uma misteriosa e inexplicável peçonha, que a medicina moderna registou quase um código como o SARS-CoV-2. A pandemia, que se expandiu depressa e exponencialmente até aos mais ínfimos refúgios do mundo, mede-se hoje por números imensos de infetados, milhões de mortos por causa direta da doença, outros tantos por omissão nos hospitais, e consequências ainda não totalmente estimadas noutros tipos de danos sobre a espécie humana, na psiquiatria, na economia, no relacionamento interpessoal e em muitas outras áreas mais subtis da sociedade. Também, com pouca margem para dúvidas, deste colapso sanitário irá resultar um mundo novo, mas pouco admirável – um monstro já em curso, e pronto a excluir os que a ele não se conformem, ou seja, não se domestiquem.
Há poucos dias, no final de março, um problema com o enorme cargueiro porta-contentores “Ever Green” em pleno Canal do Suez, que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo, acabou por causar uma dificuldade considerável ao mundo, admitindo-se que o seu encalhamento tenha entupido 12 por cento do comércio mundial e muitas indústrias. É claro que o incidente, que chegou a bloquear 422 outros navios, foi uma enorme mala pata – e logo num local tão nevrálgico como o Canal de Suez, encalhando numa posição e num sítio onde os efeitos de bloqueio ao tráfego, com os 400 metros de comprimento do gigante, não podiam ser piores. À escala do planeta, e pelo efeito dominó que causou, as consequências do azar foram muito consideráveis.
O que é comum a todos estes significativos quatro casos, e a muitos outros se podiam acrescentar (sendo, na sua não-linearidade, a esmagadora maioria episódios tristes e casos infelizes), é o facto de todos eles ilustrarem à sua escala, e na respetiva medida e universo, ilustrações do chamado “efeito borboleta”. Coisas que sucederam lá longe, mas que, por efeito de cascata (que parece dar mais eco aos factos negativos), atingiram as ilhas da Polinésia, os esquimós no Polo Norte e os mais recônditos índios da Amazónia.
O “efeito borboleta” foi primitivamente analisado pelo matemático e meteorologista americano Edward Lorenz, em 1963, e a globalização teve o condão de o converter de uma insólita e peculiar singularidade física (que depende muito das circunstâncias iniciais que condicionam uma situação) num fenómeno abrangente, tremendo e cada vez mais habitual nos nossos dias. Inicialmente, ninguém reparou no trabalho de Lorenz, motivo pelo qual ele voltou a apresentá-lo nove anos mais tarde num congresso sobre ciência. E deu-lhe um título com uma pergunta quase provocatória: “Será possível que o bater de asas de uma borboleta no Brasil provoque um tornado no Texas?” A provocação pegou, e a verdade não-linear que ela trazia consigo passou a ser considerada com outra atenção e respeito. Ao ponto de explicar coisas como Trump na América, a Máfia Russa e o caos das redes sociais que, de outro modo, ficariam por entender para sempre.
Ainda antes de tudo isto, o historiador e cronista brilhante Vasco Pulido Valente, com a abnegação cáustica de que era superiormente dotado, escrevera um dia que o mundo estava a ficar muito perigoso. E mais tarde acrescentaria: “E complicado”. Acrescentarei, com a legitimidade que me é permitido extrair das evidências, que o mundo se transformou num palco de fantasmas que a pandemia tornou em zombies silenciosos, obcecados, paranoicos e absorvidos no teletrabalho. E cujos únicos sinais de sobrevivência são uns traços lestos e uns posts ora ambíguos ora de um fanatismo cretino no mundo paralelo do Facebook e nos simulacros de magia divina das redes sociais. Zombies tóxicos que nunca mudam de opinião e zumbem em quem não comunga do mesmo catecismo, vomitando ódio digital intercalado com parvoíces do foro psiquiátrico. Com o confinamento pioraram. Formam já um exército – e o problema vai ser quando souberem disso, o que pode muito bem acontecer com qualquer rastilho ateado noutro extremo do planeta e que obtenha condições favoráveis, primeiro de propagação, e depois de deflagração.