
Já lá vão uns bons anos, mas o carácter da personagem marcou-me de tal modo que ainda hoje a sua figura de oráculo de gravata vermelha imaculada e sobretudo longo e negro me ocorre, particularmente quando se aproximam as épocas de eleições presidenciais (que intercalam de dez em dez anos com plebiscitos ao Presidente, como volta agora a ocorrer). Já não me lembro se foi numas ou noutros, que o na altura cidadão candidato a candidato presidencial me procurou, perspetivando que eu pudesse trazer algum apoio jornalístico ou influência ao seu projeto de candidatura. Devo confessar, com humildade, que nunca alcancei muito bem o mecanismo subtil do seu pensamento, mas isso também não tem importância alguma. O putativo candidato era bastante eloquente e mostrava-se apto a digladiar-se, aos seus cinquenta e poucos anos, no areópago eleitoral, com alguns monstros políticos, com partidos e uma procissão de jornais e televisões atrás de si de cada vez que saíam de casa. Era um David, com uma funda nas mãos, e alguns Golias, mas o seu vaticínio era mesmo o de que David ganhava.
No almoço que nos juntou num restaurante da zona norte do Entroncamento, a primeira impressão que recolhi foi notoriamente olfativa, antes de o poder ver mais de perto já sentia o perfume másculo com que se apresentava, e havia também muita brilhantina resplandecente num cabelo aparentemente negro. Além da retórica, que logo a seguir foi manifesta em versão incontinente e torrencial, o oráculo já se anunciava pelos aromas e pelos paladares vernáculos escolhidos no menu. A sua estratégia para mostrar uma candidatura forte parecia, assim, apelar sobretudo aos sentidos. Antes de começar o repasto, o homem, talvez para eu me sintonizar melhor no seu propósito, manifestou logo uma paixão inflamada pelo Médio Tejo. Eu fiquei surpreendido, e um pouco dececionado. Como podia alguém ter paixão por uma unidade estatística de segunda categoria? Eu vejo e converso com homens e mulheres apaixonados pelo Ribatejo, pelo Alentejo, pela Beira Baixa ou com transmontanos irredutíveis. São realidades físicas, culturais e históricas que tornam os seus em abnegados defensores. Agora paixão pelo Médio Tejo?…
Eu devo ter deixado denunciar no rosto esta minha hesitação, mas o oráculo fez questão de apresentar logo a seguir, como se cumprisse um plano, os seus argumentos em relação a aspetos fortes da região. Falou, já quase a discursar para o restaurante, bastante composto, de que o Entroncamento, pela sua centralidade, acessos ferroviários e rodoviários, e proximidade com o Interior mais deprimido do país, poderia acolher alguns serviços governamentais; Torres Novas devia dar outra força ao seu figo preto; sobre o aeródromo de Tancos tinha ideias originais e excelentes, mas delirantes; e lembro-me ainda de ter falado da sua visão para Fátima (não sei se já tinha sido revelado o terceiro segredo…) e para Tomar, para ressuscitar a sua indústria. O país devia entender o génio.
Alguns copos de Reguengos de Monsaraz (tinto) depois, o oráculo tornou-se menos político e presidenciável, e um pouco mais humano, talvez até demasiado humano. Pareceu-me, porque eu ouvia mais do que falava, que já me tomava mesmo como um confidente. E confessou-me, já com os últimos Reguengos derramados. Que nunca tivera muita sorte com os seus negócios. As suas ideias eram visionárias, sim, tinha a intuição do futuro e das tendências que o norteariam. Mas por algum azar (uma teoria da conspiração, como hoje, mais refinadamente, se diz), haveria sempre algum pormenor que falhava, os negócios resvalavam e as falências (incluindo em cooperativas) sucediam-se, tendo nelas consumido a sua reputação e afogado a reputada herança da família, proveniente da nobreza agrária. No fundo, era um Bill Gates, um Mark Zuckerberg um Jeff Bezos, em versão portuguesa e fadista, com o triste problema de entrar nas danças fora do tempo certo. “Sabe, tenho um tal azar com os negócios, que estou certo de que se eu hoje decidisse investir e construir uma fábrica de chapéus, os bebés amanhã começavam a nascer sem cabeça…”, lamentou-se.
Tenho-me lembrado com alguma frequência, nas últimas semanas, desta asserção tão franca e humana do nobre candidato que, no fundo, nem presidente de si próprio era. Não sei sequer se conseguiu nessa altura recolher as assinaturas necessárias para as querelas e debates presidenciais ou, se as conseguiu, qual o resultado obtido, admitindo que não teria sido famoso. Mas, pergunto-me, se não terá chegado agora a altura ideal para a apresentação da sua tão cara candidatura e entrar na dança. A hipótese não é, infelizmente, nem aleatória nem totalmente gratuita.
Os tempos modernos não estão a soprar a favor do ser humano nem da sua inteligência, já mais presumida que real. Mas estão certamente muito favoráveis ao oráculo. E o incremento de incontáveis redes sociais (com origens sempre louváveis, mas cuja evolução origina abusos irreparáveis) está a funcionar surpreendentemente a favor da tal geração de gente sem cabeça, ou, se a tem, parece que não. O mundo está hoje por conta de radicalismos e fundamentalismos que prosperam nas redes sociais (com algoritmos que jogam a seu favor) como um vendedor de castanhas assadas em dias frios e chuvosos. Ali encontrou abrigo a sarna do politicamente correto e do pensamento único, comandada remotamente por uma cabala indecifrável, mas funesta. Mal de quem, a propósito de algum tema mais fraturante, não pensa pela pauta do catecismo adotado e tem a veleidade de pensar pela sua própria cabeça, com a sua cultura, a sua natureza subjetiva e a sua história pessoal. Os tempos estão bons para a manada do pensamento de cartilha, e nela, sobretudo se em movimento, já se sabe o que acontece a quem se mexer num sentido divergente. Incapazes de uma ideia própria, pensam pela cabeça dos outros, e se nenhum tem o menor vestígio do que é uma ideia, melhor. Se gostam de filetes vegans ou de lulas, todos devem adorar filetes vegans ou lulas. A manada indistinta odeia com ardor e aversão os outros, os diferentes, e acompanhada de figurões arrogantes, como Trump, pensa apenas em si, e tem tido tempos de muito esplendor e pouca vergonha.
O oráculo com paixão pelo Médio Tejo tem agora tudo a seu favor para uma campanha eleitoral favorável e entrar num negócio promissor e proveitoso (não sei se já juntou as assinaturas necessárias). É agora a altura ideal de avançar para a candidatura. Se ele não souber porquê, muitos dos outros, que já as apresentaram, também não…