
Um dos principais efeitos que as sucessivas revoluções industriais introduziram nas sociedades ocidentais, para além da inevitável e irreversível cultura de massas daí resultante, foi a da acresentada aposta nas máquinas e tecnologias das mais diferentes ordens, onde assentou boa parte do nosso desenvolvimento nos dois últimos séculos. De algum modo, elas e o iluminismo renascentista que lhes deu moldura vieram ocupar o espaço das trevas da Inquisição e dos fanatismos religiosos que atravessaram toda a Idade Média. De algum modo, a Ciência e as tecnologias substituíram então o Deus ameaçador que alguns quiseram então impor.
Porém, nas últimas décadas, a aceleração criada pelo “admirável mundo novo” dos computadores, da Internet, das telecomunicações, das redes sociais que hipermediatizam a presença de quem o deseja e da hiperrealidade do virtual, estão a tornar a sociedade atual cada vez mais radical, sem rosto, escrutinada por vigilantes ociosos, sem contacto físico nem visual, propícia a fake news, e mutante, desumana e submissa ao que quer que seja que se arme em tribuno de uma qualquer moralidade, como a da sinistra personagem de Donald Trump, que terá tanto mais audiência quanto maior for o seu radicalismo.
E, como se todos os malefícios já causados no mundo não fossem suficientes, a sarna da Covid-19 poderá deixar ainda um legado mais perverso, repugnante e duradouro ao ser humano que os que já causou com a pandemia sanitária, económica, psiquiátrica e social, para não sermos muito exaustivos. O que está em causa é a idiotização e a hipnose do ser humano, comandado à distância por um qualquer motor de busca, capaz de lhe apagar qualquer assomo de inteligência ou de vontade própria e o tornar num duende automatizado e destituído de qualquer capacidade de crítica, aliás, já com a preciosa colaboração e cumplicidade de alguns sistemas educativos e políticos. Muita gente anda embriagada e servil de trela ao pescoço com as novas tecnologias e, só por poder dispor delas, usa-as, sem moderação, sem limites e sobretudo sem pensar.
Poeta, escritor e, sobretudo, músico, Terpandro foi uma figura marcante da Grécia Antiga, a quem se atribui a pacificação da bélica Esparta apenas por meio da música e a invenção do heptacórdio, uma variante da lira a quem acrescentou três cordas, ficando com sete. Terpandro criou ainda o diatonismo, e deve o seu nome ao facto de com as suas belas canções ter passado por um “deleitador de homens”. O seu brilho como músico inventivo e o facto de ter introduzido o ensino da música nas escolas não passaram despercebidos em Esparta, nem ao seu Senado. Tendo criado novas músicas e novos instrumentos, os espartanos passaram a conhecer novas sonoridades, e isso também não passou ao lado dos insignes senadores da cidade-estado, que por zelo em excesso ou não, se mostraram preocupados com os efeitos que aquelas novas e estranhas melodias poderiam criar nos seus coetâneos. Acreditavam os senadores que a música era uma coisa séria, não só por si mesma, decerto, mas também pelos estados de espírito e de ânimo, e os efeitos no corpo que era capaz de induzir. E, sendo assim, podia levar ao deleite, incentivar à luta ou exceder o frenesim do nacionalismo numa batalha ou acentuar o lirismo diante de uma paisagem outonal. As notas musicais e os acordes que teciam podiam funcionar como leis, as “nomoi”, porque as pessoas ficavam hipnotizadas com elas, e deste modo pouco mais seriam que bonecos manupuláveis e comandados por sons. Para o Senado, Terpandro criara uma enorme perturbação na sociedade espartana e, só por esse atrevimento, merecia acusação e castigo. Prisão ou uma multa, a indignidade merecia uma pena. Mais cultas ou mais primitivas e arborícolas, as opiniões dividiam-se, mas ninguém pareceu indiferente ao caso.
Logo após o início da Revolução Industrial, que exigia energia e muito carvão e água para a produzir, o subsolo de muitas regiões, sobretudo nos países onde a metamorfose começava a ter corpo e intensidade, começou a ser esventrado afanosamente para obter o combustível negro que alimentava siderurgias, comboios, navios e a imaginação capitalista, mas deixava marcas nos mineiros que o extraiam em túneis e a centenas de metros da superfície. Muitos mineiros morriam não por quedas ou desabamentos, “morriam apenas” ̶ até se descobrir que afinal a sua morte era devida ao envenenamento com gases invisíveis, mas tóxicos, como o metano e o monóxido de carbono, produzidos no interior das galerias em exploração. Alguém com perspetiva lembrou-se então de levar canários para as minas, e ouvir naquela negritude afundada não só o canto terno e mavioso daquelas aves, como estar atento a se a bela ave se calava. Se se silenciava, era bem possível que tivesse morrido. E isso era mau sinal: os gases venenosos estariam a expandir-se na galeria e o melhor para todos era subir no elevador antes que fosse tarde. Este indicador analógico da toxicidade nas minas ficou conhecido em Inglaterra como canary in the coal mine, e nos tempos em que as minas eram assim exploradas ninguém se deu ao luxo de, a partir de então, o ignorar.
Nestes tempos hodiernos e profundamente distópicos, que a Covid-19 tornou numa era quase sociopata, de confinamentos, cada um vivendo no seu alvéolo físico, psicológico e virtual, debatemo-nos ainda com a pandemia de todas as aplicações eletrónicas que nos afastam ainda mais uns dos outros, até ao ponto de nos deixarmos de reconhecer (e não é só por causa da máscara). E, entretanto, teremos perdido a nossa identidade e a nossa liberdade. Sem, ao menos um canário que nos possa avisar de tais danos digitais. Mais que um problema de saúde, social ou da grave depressão económica em que já mergulhámos, a pandemia veio acrescentar a ameaça de um novo paradigma civilazacional. E o que vem para aí não é flor que se cheire, nem haverá canário que a ele não sucumbe. Uma civilização, já antecipada há mais de um século pelo escritor E. M. Forster, que vive abaixo do solo, vegetando em plataformas tecnológicas, com tudo o que precisa ao alcance de um click no rato do computador, onde a liberdade não existe, mas em compensação, também já não é precisa.