Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Ainda há pessoas assim. Durante décadas foi sapateiro, profissão que intermediava com as atividades de boémia garrida com vinho do tonel e de exímio jogador de cartas e de damas na taberna ao lado da sua sapataria, que pouco mais era que um vão de escada, e de executante de cavaquinho e banjo, práticas que celebrava sob qualquer pretexto e condição com muita paixão e algum virtuosismo.

Com os consertos dos sapatos e a aplicação de meias-solas e de rastos de pneus nas botas ganhava a vida; e com os concertos instrumentais à porta do trabalho, a libertinagem do vinho e dos petiscos do fim de tarde e os vícios do jogo e de não poder ver um rabo de saias, mesmo já em idade adiantada, deve ter ganho o inferno; mas eu estou mais inclinado para que o Freitas (o nome é suposto) vá para o céu.

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Primeiro, porque é essa a preferência que manifesta de modo aberto e expressivo, e na sua vida sempre procurou seguir os ditames do princípio epicurista carpe diem, vive cada momento que passa, que é uma bênção bem divina. E o sapateiro vivia-o, nem sempre com hedonismo, algumas vezes havia dor. Dizia-se que partiu um dia o polegar depois de uma martelada fulminante mas de pouca pontaria, quando uma senhora de busto prendado e decote ainda mais generoso, entrou sem aviso no seu estabelecimento comercial…

Para os mais fundamentalistas a sua vida poderá não ter sido mais que um folhetim colecionável de pecados que ofendem uma boa parte do decálogo dos mandamentos. Mas, para quem o conheceu e conhece, agora já em plena e merecida reforma, toda essa exuberante obscenidade de prazeres embrulhados em pecados foi hoje convertida em padecimentos previsíveis e imprevistos, que vão da gota e da diabetes a tiques obsessivo-compulsivos adquiridos quando perdia às cartas e que não conseguiu exorcizar totalmente através do palavreado vernáculo com que emoldurava o azar que tinha nalgumas jogadas. Dessa vida, antes de chegar o fado triste da idade, não tem arrependimento nem remorso.

Se houvesse alguém a quem devia pedir perdão, hoje que já está cheio de juízo, mas sem saúde para o saborear, era aos inúmeros clientes do seu artesanato utilitário de couros, a quem para alocar um simples tacão, colocar contrafortes, aplicar umas meias-solas, um par de saltos altos ou dar uns pontos numa ranhura no couro inoportuna e feia, demorava uma infinidade de semanas. Aceitar trabalho era-lhe fácil, o pior era fazê-lo e, ainda pior, cumprir os prazos que ele próprio estabelecia. Os infelizes clientes tinham de se arrastar e suplicar vezes sem conta ao Freitas para ver resolvida a tarefa mais banal numa sandália, coisa que o sapateiro tomava como um frete adiável.

Em décadas da oficina de sapataria sempre me lembro de a ver desorganizada, sabuja, imutável e singularmente funcional. Os sapatos, rotos ou com outras mazelas, num montão admiravelmente caótico à sua ilharga, do lado esquerdo, local onde sempre ocorria o milagre de o Freitas, homem alto e de braços longos, sempre conseguir encontrar o par de cada exemplar; um monte diminuto dos sapatos que tinham tido a sorte do arranjo, depois de muita insistência dos respetivos proprietários, à direita; no chão alguns pneus (para os rastos das botas de borracha), e nas prateleiras, de forma aparentemente aleatória, botas da tropa e de cano alto e com esporas e capas; também havia um armário com as coisas mais estranhas lá dentro, mas que o sapateiro considerava indispensáveis para muitos arranjos, e um banco corrido de madeira para a clientela mais paciente ou conversadora. A forrar todas as paredes, e até o teto, dando-lhes cor e excitação, calendários de mulheres nuas, que atraiam o olhar dos homens, e afugentavam a presença das senhoras, que, retraídas, não tinham para onde olhar, nem sequer para o teto, e se sentiam a mais entre ambiente tão obscenamente marialva. Mesmo quando o canário numa gaiola à entrada no estabelecimento morria de idade ou de tanto cantar, o sapateiro nesse mesmo dia havia de encontrar outro para o substituir e para atenuar a solidão que sentia quando não havia clientes à conversa sobre a maledicência na urbe. E havia a pequena mesa de trabalho, onde, sobre as cevelas, facas, cardas, grosas, alicates, fios de coser, latas com sebo e mil outras tranquitanas do ofício, vergava o seu tronco e onde também ganhara uma corcunda considerável. Com os seus longos braços, e como um baterista atrás do seu instrumento de trabalho, o Freitas Meias-Solas, parecia chegar a todos os cantos da oficina, fosse para retirar uma lima do armário ou passar, ao fim do mês, mais uma folha de calendário e destapar outra magnífica ruiva descendente de Eva. Naquela oficina, durante todos os anos em que o sapateiro boémio lá trabalhou, cada coisa tinha o seu local, e não havia razão nenhuma para mudar, tudo funcionava, e funcionava à maneira do seu gerente e proprietário. Freitas era um conservador por intuição e por talento, e era assim o seu céu. Essa era a melhor maneira de funcionar, por mais sugestões de mudanças que os clientes lhe dessem. Tantos anos depois, à porta da sapataria, ainda sentimos aquele cheiro perpétuo de graxa, sebo, couros curtidos e do suor daqueles velhos tempos.

Nestes tempos da Covid-19, em que, entre emergências, calamidades, confinamentos e uns vagos esboços de desconfinamento, a nossa vida tem dado ziguezagues notáveis, tem sido assustador a forma como vejo algumas pessoas a mudarem tão abruptamente a sua opinião sobre tudo e sobre nada do que vai acontecendo. São verdadeiros cata-ventos sobre qualquer ideia, opinião ou alarme que oiçam, e tornam-se depois altifalantes das ideias mais estúpidas que ouviram numa esquina, nas redes sociais ou vinda de quem lhes pagou a última bica ao balcão de qualquer bar. É constrangedor perceber o que poderão ter na cabeça estas criaturas que mudam tão facilmente de opinião e correm atrás da última fake new viral à solta na Internet. E espantam-me com a forma como hoje adotam comportamentos e atitudes que ainda ontem abominavam  ̶   e amanhã excomungarão, se tiverem poder para isso, quem pensar como eles pensavam hoje. Talvez sorvam overdoses de informação em ritmos tão rápidos e frenéticos que não tenham tempo para esboçar, nem que seja palidamente, um pequeno exercício ou esforço de reflexão e crítica. Mudar é o máximo, alterar o que existe é sublime e deixar em cacos qualquer situação existente é o cúmulo da inovação e da excelência.

Mas o maior problema dos cata-ventos não é sequer a mudança súbita de convicção, sustentando durante dois dias sucessivos a mesma fé. O maior busílis desta estirpe digital é que opinam sobre tudo, com a agravante de darem às suas opiniões a amplitude permitida pelas redes sociais e com o anátema inquisitorial sobre quem não pensa assim, apesar do no dia seguinte já pensarem o contrário. E dão opinião e emitem soundbites sobre educação, professores e ensino à distância, saúde, medicamentos e epidemias em particular (ciência que de resto ganhou reputados especialistas em Portugal nos últimos três meses), ética de cabeleireira, ansiolíticos, bons vinhos e maus costumes, o que lhes der na cisma.

A Covid-19, que começou por ser (e ainda é) um problema sanitário, e se converteu gradualmente numa sarna económica, social e suspeito já que psiquiátrica, arrasta ainda esta praga viral dos cata-ventos que se propagam na Internet, e cujo alcance é tanto maior quanto maior é o dislate emitido e a incontinência verbal, e menor o seu sentido de bom senso. O novo coronavírus, com tudo o que continua a pôr em causa., parece não ter trazido apenas alterações à fisiologia humana, mas também à forma com muita gente começou a pensar, virando tudo de pernas para o ar.

O mundo parece estar polarizado entre senhores Freitas, arcaicos e conservadores, e cata-ventos, destituídos de qualquer sentido crítico, e que sopram para onde vai o vento. Como em tudo, temos de ter referências, valores e rochedos num mundo que os parece ter perdido – e também uma certa flexibilidade e capacidade de orientar o leme, o que qualquer radicalismo nunca poderá sequer admitir.

Manuel Fernandes Vicente

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