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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Este início de década a que podemos chamar de algum modo como os anos 20 do século XXI é uma oportunidade para, no Entroncamento, olharmos com alguma curiosidade pelo retrovisor do tempo, recordando o que esteve previsto construir no nosso burgo nos mesmos anos 20 do século passado. Eram projetos de grande fôlego e bitola larga na visão dos empreendedores nacionais e internacionais, e mesmo da própria empresa dos caminhos de ferro. E resultavam de uma perspetiva de estratégia de desenvolvimento integrado do país, em que os caminhos de ferro tinham elan e eram um dos pilares essenciais, e cujo impacto na então aldeia ferroviária seria naturalmente enorme.

O primeiro grande investimento, estudado e proposto logo no início da década de 1920 pela CP à Direção Geral dos Caminhos de Ferro, foi a construção de uma via férrea do Entroncamento até à Serra da Mendiga  ̶ e eventual prolongamento de mais alguns quilómetros até se ligar com a Linha do Oeste. A pertinência da linha, que teria a sua passagem prevista por Torres Novas, Gouxaria, Alcanena, Amiais de Cima, Alcanede, Alqueidão e Rio Maior, ligava-se sobretudo ao escoamento dos carvões do Couto Mineiro do Lena até ao Entroncamento, cuja localização beneficiada na Linha do Norte e do Leste permitiria também o transporte ferroviário do carvão até às Beiras. Era uma ligação, que possibilitaria escala e que tornaria mais barata a chegada do combustível fóssil aos mais diversos pontos de consumo dispersos pelo país. A empresa mineira concessionária The Match and Tobacco Co., que tinha também outros negócios e estava cotada em bolsa, disponibilizou-se a construir alguns quilómetros de linha, ficando os 50 km, que atravessariam a Serra de Candeeiros e o Planalto de Santo António, por conta da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, ou seja, do Estado. Além do seu papel ativo na distribuição e entregas do carvão e no acesso a novos mercados, a CP, que também tinha créditos na Match, era ela própria um cliente diretamente interessado para as suas primitivas locomotivas a carvão e vapor que a toda a hora percorriam os milhares que quilómetros do mapa ferroviário português. Mas o negócio correu bastante mal. O carvão das minas da Bezerra já estava próximo do esgotamento, e o que se produzia em maior quantidade no couto mineiro não tinha qualidade, gorando-se a santa aliança entre a ferrovia e a extração mineira, que sempre esteve na base do desenvolvimento industrial clássico. A Match começou também com problemas financeiros (falira a sua principal acionista, a Sociedade Torelades), a CP idem, as suas relações tornaram-se cada vez mais difíceis, e a linha mineira para o Entroncamento, que também chegou a prever o transporte de passageiros das povoações intermédias, nunca chegaria sequer a assentar os primeiros carris. Igualmente falecidas no papel nessa altura ficaram as construções das ferrovias que ligavam a aldeia do Entroncamento à Serra da Estrela (em Gouveia), que já tinha o aval das entidades militares, e a aventura prototurística que chegaria à Nazaré, e outra, até Montargil e Mora.

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Pouco tempo depois da linha mineira, uma outra visão iluminou o céu virtual do Entroncamento, e, como a anterior, não deixou mais que uma sombra, foi apenas uma ideia respeitável e lógica, mas sem estudos nem projetos envolvidos. A ideia extraia uma consequência valiosa da situação ferroviária do lugar do Entroncamento. Surgiu logo em 1929, nos alvores da Campanha do Trigo   ̶  as sinergias entre os silos de cereais e os caminhos de ferro eram óbvias e irresistíveis  ̶  e o plano prévio era, tirando partido da sua centralidade e de os seus “braços” de ferro se poderem alongar até muitas regiões do país, o Entroncamento ser um player de primeira grandeza nessa campanha que procurou e estimulou a produção cerealífera em Portugal, sobretudo no Alentejo e no Ribatejo. Seguindo este desiderato a estação do Entroncamento, por ser um destacado nó ferroviário, ficaria fornecida com um dos três silos centrais, os mais importantes do país, tal como a povoação de Casa Branca, no Alentejo, e Leixões, no Norte, e um notável cluster dos cereais que este equipamento potenciaria ao burgo a jusante deste negócio. Seriam grandes silos para garantir a guarda e a conservação de grandes quantidades de cereais recebidas e para expedir. E reequilibrariam os desequilíbrios entre regiões com excesso de produção de cereais e as que deles tinham carências. Esta ideia seria estudada e defendida ao longo da década de 1930 pelo professor do Instituto Superior de Agronomia e engenheiro agrónomo Ruy Mayer, responsável pela elaboração, a pedido da Federação Nacional dos Produtores de Trigo, de um relatório sobre o estabelecimento e localização de silos de trigo no nosso país, tendo em conta os locais de produção, de moagem e de consumo.

Tal como no caso das indústrias possíveis a partir do acesso facilitado ao carvão (que o futuro se encarregaria de tornar como matéria-prima quase excomungada e a evitar para evitar o apocalipse), também os silos caíram antes de se erguer. A I Guerra Mundial viera gerar as primeiras unidades do complexo militar-ferroviário do Entroncamento a partir da sua natural aptidão logística. E com os silos procuravam-se as mesmas vantagens competitivas. É um pouco especulativo, sim, mas é irresistível pensarmos nos vários cenários que se poderiam criar para o Entroncamento com estes investimentos há cerca de um século. Melhor ou pior, a cidade seria muito diferente. Mas, nem estes investimentos se realizaram, nem outros. E após o final do Estado Novo, por ironia ou não, os caminhos de ferro entraram em acelerado declínio, optando os governos da democracia pelas autoestradas, o emblema mais visível do novo-riquismo com o dinheiro made in Europa. Ainda este domingo, em entrevista dada ao diário Público, a geógrafa Teresa Sá Marques, a coordenadora do Plano Nacional de Políticas de Ordenamento do Território, considerou um erro do passado e o esquecimento da ferrovia. “É preocupante como não fomos suficientemente inteligentes para perceber que a ferrovia era o meio de transporte sustentável, determinante, no qual devíamos ter apostado, sobretudo nas zonas de grande fluxo populacional”, comentou a geógrafa da Universidade do Porto. Sensível como o cabelo de um higrómetro à realidade da ferrovia, é notório o que o Entroncamento perdeu imenso nas últimas décadas com a aposta rodoviária dos nossos governos, tão notória e desproporcionada que levou um ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Ferreira do Amaral, a comentar sem remorso que os editores de mapas das estradas do país não tinham pedalada para o acompanhar na sementeira de asfalto com que o contemplou na sua saga empreendedora.

 

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