Este sábado, 29 de outubro pelas 16h00, foi lançado um novo volume da revista Nervo, consagrado ao tema “O comboio e as viagens”. A apresentação contou com Maria Fátima Roldão, responsável editorial, Manuel Cabral, Presidente do Museu Nacional Ferroviário, e ainda com dois convidados, leitores assíduos da revista.
O universo ferroviário atravessa as mais diversas criações artísticas, pelo que esta obra, editada em boa hora, é um claro exemplo dessa concepção, graças à conjugação de poemas com desenhos, pinturas e fotografias.
Os textos provêm de autores lusófonos e estrangeiros, com distintas formações e mundividências, entre os quais se contam, entre muitos outros nomes reputados, A.M. Pires Cabral, Pedro Mexia, Inês Lourenço, Luís Maffei ou Luís Quintais. A revista inclui ainda um texto, no âmbito da designada literatura de viagens, do trajecto de Gonçalo Cadilhe no antigo Expresso de Brazzaville. De entre os artistas plásticos representados, destacam-se: Álvaro Siza Vieira (!), o responsável da capa, Cristina Troufa, Gil Maia, Helena Rocio Janeiro, Mariana Mizarela, entre outros.
O comboio – e o que com ele se relaciona – surge nos mais diversos sentidos, segundo a cosmovisão dos poetas. Liga-se, desde logo, à própria criação poética, com se lê em “de um verso em desalinho / como a do comboio, / na citação incerta e acelerada / a sustentar o poema” (Rita Taborda Duarte p. 74). A reflexão interior do “eu”, quando sintetiza “O comboio é, ao mesmo tempo, / viagem, viajante e lugar viajado” (A.M. Pires Cabral, p. 31), sugere uma vivência, que se alicerça na memória, “lugar viajado”, e exprime um percurso existencial, similar a uma viagem. Outro sentimento, o da saudade, ecoa de modo explícito nestes versos: “E dos comboios que partiram / resta apenas a cauda de barulho qua se esvazia” (António Amaral Tavares p. 35). Eduarda Chiote denuncia, com notações amargas, um período sombrio da história do século XX: “Vítimas do seu mau uso, os comboios / reflectem a dor dilacerante / dos atirados aos magotes e ainda muito jovens / para um campo de concentração” (p. 41). A passagem inexorável do tempo lê-se no incipit do poema “Hermes, ferroviário”: “O comboio nocturno à medida que avança, / Enraíza a escuridão / À altura dos olhos” (José Emílio-Nelson p. 57). Ainda neste prisma, a comparação haurida na simbologia do TGV demonstra a consciência da efemeridade da condição humana: “Com tanta paragem tanta espera, tanto tempo para / sentir a vida passar como um TGV” (Marco Mackaaij, p. 61). Por outro lado, o comboio associa-se ainda ao tópico da nostalgia, evocativo de um passado que não regressa: “Era o tempo em que o comboio parava em todas / as estações: o comboio correio, a caminho de lisboa, / levando famílias da província para passar o ano / com os parentes de lisboa” (Nuno Júdice, p. 66). O deslumbramento imagético decorrente da janela do comboio, está patente em “Primeiro os cimos, as casas, / os verdes, as vezes / que aqui passámos / também elas paisagem” (Pedro Mexia p. 68). Também a gare ferroviária, metáfora recorrente de encontros, partidas e chegadas, exprime o vazio existencial entrelaçado com uma certa nostalgia de infância: “estações de comboio chefiadas por andorinhas, / fantasmas de crianças que atravessam, / de mochila às costas, as férreas linhas” (Rui Lage, p. 77). Nesse referente emblemático não falta a agitação pitoresca do anseio suscitado pelo momento da chegada: “Às segundas e sextas-feiras / era dia de comboio em Vila da Ponte, / a caminho de Menongue. / Com o comboio, / chegava o peixe fresco de Moçâmedes, / chegava o marisco ainda vivo” (Zetho Cunha Gonçalves, p. 98).
Assim, o imaginário fundado no caminho de ferro, indissociável da inspiração poética, permite as mais diversas expressões líricas, testemunhadas com inegável expressividade nos versos da colectânea.
Num tempo de plataformas digitais, o volume publicado, já no número 16, configura, por assim dizer, um verdadeiro fenómeno do Entroncamento, devido ao empenho e sensibilidade de Fátima Roldão, responsável editorial desde o primeiro número desta publicação quadrienal.
Aguarda-se com agrado o próximo número da revista, a merecer, sem dúvida, um estudo que tenha em conta a riqueza do património poético, comprovado nas sucessivas edições, e a sua pertinência no contexto das letras nacionais.
José Manuel Ventura