Na sala do Comboio Real o comboio foi visto com simpatia pelos autores presentes (Foto NF Vicente)
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A ideia foi um belo e gratificante estímulo, a escolha dos convidados criteriosa e certeira, e o momento e o local dificilmente seriam mais apropriados para quem estava pronto para percorrer o vasto mundo conhecido e desconhecido da literatura de viagens. Com Carlos Vaz Marques no leme, como moderador, os escritores de viagens (e de outros temas) Raquel Ochoa, Francisco José Viegas e Afonso Cruz nos remos, e um vasto e interessado público a bordo de uma viagem que contou com episódios curiosos associados às narrativas dos tripulantes, falou-se de viagens junto ao comboio real do Museu Nacional Ferroviário. E na data de 20 de junho, em que se comemoraram 30 anos certos da cidade que nasceu delas, das viagens, mesmo quando ainda seria escassa, na altura da sua fundação, a literatura que às viagens aludia, talvez Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, que deu em livro em 1846, e, em Portugal, pouco mais, decerto.

Francisco José Viegas (Foto MF Vicente)

Carlos Vaz Marques, jornalista, escritor e reconhecido autor do programa de rádio e mais tarde televisivo Governo Sombra, costuma fazer sempre os trabalhos de casa (hoje matéria ingrata e hostil para quem não gosta de trabalhar e se ufana disso), e isso fez a diferença, impulsionando o diálogo e o ambiente em que os três excelentes autores desceram do seu estatuto e mostraram o lado mais humano e histórias singulares e até mesmo picarescas

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Carlos Vaz Marques (Foto MF Vicente)

próprias de quem escreve. De quem escreve, nutrindo a inspiração com esse viajar, desde o andar a pé ao papar fusos horários sentado num avião, embora também não seja hoje de descartar a possibilidade do viajar “imersivo”, através de um mapa e sem sair do mesmo sítio, ou mesmo através da gastronomia e de bons vinhos, outras formas de evasão, nem sempre sequer as muito baratas. Mas o melhor é mesmo viajar, perambulando pelo país e pelo mundo… Sobretudo de comboio, meio de transporte, ou melhor, de viajar, um pouco esquecido, mas que qualquer dos escritores referiu com simpatia, adesão e sentimento, ou não estivesse o velho Comboio Real ali mesmo ao lado para ser respeitado.

Uma das coisas que Carlos Vaz Marques quis logo saber é como se organiza um escritor de viagens que vai passar um mês ou mais pela Patagónia e pela América do Sul, quer atravessar a Índia de lés-a-lés ou pretende surripiar os segredos na Groenlândia. A viagem faz-se com método, tempo e planeada ao detalhe, ou deixa-se que o acaso aconteça? E recorre-se a notas escritas ou fica antes tudo registado na memória?

Francisco José Viegas, professor, editor, autor de livros como Comboios Portugueses – Um Guia Sentimental (com fotografias de Maurício Abreu) e A Luz de Pequim, e natural do Pocinho, relevou logo no início da sua intervenção o seu ADN ferroviário. “O meu avô era ferroviário e, para ele, o Entroncamento era a capital portuguesa”, referiu, notando ainda que Pocinho era a última estação (ou a primeira, dependia) da linha do Douro. “A primeira viagem de que me lembro foi de comboio, exatamente por esta linha do Douro, com a minha mãe e o meu avô, para ir buscar o meu pai, que eu ainda não conhecia a Lisboa”, recorda, esclarecendo da chegada do pai, combatente vindo da guerra colonial ao cais de Alcântara. “O mapa de Portugal é o mapa da ferrovia portuguesa, com as suas linhas e ramais a acompanharem os rios e as serras, a orografia nacional. Há povoações que só existiram porque existiram essas linhas, quando fecharam as linhas, acabaram as povoações; mas eu ainda gostaria de fazer um a viagem por essas linhas abandonadas”, observa.

Afonso Cruz (Foto MF Vicente)

Afonso Cruz, escritor, designer e músico (guitarra, banjo e ukulele), que vive habitualmente no Alentejo, autor de Jalan, Jalan- uma leitura do mundo, é um nómada que, admite, gosta de viajar, que “é uma maneira de pensar, de refletir”. “Quando viajo, quase sempre tomo notas, se não escrevermos logo, as nossas impressões, as nossas notas, desaparecem, e isso, por vezes, é uma pena. Ao princípio eu viajava sem máquina fotográfica, tinha uma ideia romântica das viagens. Agora levo a máquina e um bloco de apontamentos. Nas viagens e a escrever, mesmo sós, nunca nos sentimos sozinhos, e eu também gosto de teorizar sobre elas, e gosto de escrever sobre as pessoas que encontro”, acrescenta.

Raquel Ochoa (Foto MF Vicente)

Nascida em Lisboa, escritora e cronista, galardoada com o Prémio Agustina Bessa-Luís pelo livro A Casa-Comboio, com apenas 29 anos, Raquel Ochoa é um valor emergente da nossa literatura, e as viagens são para os seus romances uma inesgotável fonte de inspiração. Viajou pela América do Sul e, três vezes, pela Índia. “Fui três vezes à Índia, e acabei por escrever um livro, era pecado se não o fizesse. Neste país, as linhas ferroviárias são como o sangue no nosso corpo, e os comboios chegam a ter um quilómetro de extensão, são portentos de ferro, de três classes, cheios de pessoas, embora a sua cultura seja a de ninguém invadir o espaço do vizinho”, conta a jovem autora, notando que só a viagem de comboio de Goa a Calcutá demora três dias. “As duas primeiras classes são más, mas a terceira classe não tem nome, aí as pessoas vão no chão, e levam animais consigo, pode dizer-se que descemos ao inferno”, observa, notando, no entanto, que, ela assistiu, “quando uma senhora estrangeira precisou de ajuda, foi lá que foi ajudada por todos, todos a ajudaram. A Índia é assim”. Quanto à toma de notas, Raquel Ochoa diz que escreve freneticamente sobre o que vê e o que sente. “Se não for no momento, já não é a mesma coisa”.

Manuel Fernandes Vicente

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