E de repente, pára tudo! Para muitos acabaram os horários rígidos, os transportes públicos, as reuniões, as viagens, os almoços e jantares de convívio, levar os miúdos à escola, ir ao supermercado. Há tempo “para tudo”.
De um momento para o outro descobrimos que o que era essencial deixou de ser e que conseguimos viver sem muitas coisas que julgávamos imprescindíveis. Passado este tempo, olho para a rua deserta e começo a interrogar-me se isto tudo faz sentido e as certezas de ontem estão a transformar-se em dúvidas.
Afinal havia outras formas de fazer as coisas, a obsessão pelo deficit era mesmo uma obsessão, uma forma mesquinha e enviesada de actuar que no fundo só tinha como finalidade a manutenção do status quo existente, sem pôr em causa o “equilíbrio” social.
Entretanto a televisão vai-nos dando uma ideia errada da realidade, transmitindo imagens e vídeos de “famílias felizes” como se estivessem no paraíso, dando por vezes até a ideia que esta é a forma de vida ideal. Mas há os outros, há sempre os outros para quem a realidade é muito mais dolorosa. Vamos todos ficar bem?
Não, nem voltaremos a ser os mesmos. A diferença desta pandemia para as grandes pandemias anteriores é que nos apanhou num estádio de desenvolvimento global muito mais avançado em termos tecnológicos e sociais, o que por um lado permite reagir a ela de forma completamente diferente e, por outro, irá acelerar as mudanças no modo de vida sobretudo nas grandes metrópoles, que se anteviam, mas contra as quais íamos resistindo, talvez inconscientemente…
O modo como ocupamos o nosso tempo, as relações de trabalho, a escola, a vida social, vão sofrer em pouco tempo profundas alterações. A distribuição do rendimento terá de ser feita de forma diferente, sob pena de ruptura em resultado da revolta das classes mais desfavorecidas, que ganharão uma nova dimensão. Continuaremos a comer pão mas as padarias podem desaparecer, basta ver o crescimento exponencial que as compras online estão a ter mesmo em sectores que até aqui resistiam, como o da alimentação. Já há cadeias de distribuição alimentar a recrutar trabalhadores, não para caixas ou armazém, mas para entregas ao domicílio de produtos alimentares a cujos pedidos não conseguem dar resposta, com prazos de entrega de mais de um mês!
Do mesmo modo que a agricultura em pouco tempo deixou de ocupar 50% da população activa em 1950/60, para ocupar cerca de 10% actualmente e com uma produtividade muito superior, também os serviços (saúde, educação, banca, seguros, transportes e turismo) que hoje representam 60% do emprego, diminuirá drasticamente o número de trabalhadores. E isto enquanto a indústria e construção civil continuarão a sua caminhada na diminuição do emprego. Só que enquanto os empregados da agricultura na década de 50/60 passaram para a indústria e serviços, agora não terão para onde ir. Devemos começar a repensar a ordem económica actual, porque esta já não vai servir.
De uma forma abrupta esta pandemia provocada pela covid-19 vai demonstrar-nos que há outros de modos de fazer as coisas e sobretudo de viver. As nossas prioridades, necessidades e relacionamentos não voltarão a ser as mesmas. Até a forma como olhamos para os mais velhos se alterará, porque seremos velhos muito mais depressa mas com as competências dos novos e, sobretudo, em pé de igualdade. Tudo isto já se adivinhava que viesse a acontecer, mas agora é como se levássemos um valente pontapé no rabo de um monstro invisível que nos manda dolorosamente para a frente e nos obriga a encarar a realidade que fingíamos não ver. Vamos levantar-nos mas nada será igual.
João da Ega