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Era uma vez, há 73 anos. Duas crianças eram assassinadas de forma macabra, com um machado. É o chamado “Crime das Bicas”, no concelho vizinho duma conhecida vila ribatejana…

Na sequência da investigação da polícia judiciária, aconteceu também nessa altura nessa dita vila ribatejana, uma verdadeira “Caça às bruxas” que levou à prisão de duas cartomantes e fuga de uma terceira.

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Duas cartomantes foram  então presas durante sete meses, tendo sobrevivido numa cela onde estavam oito mulheres. Em condições verdadeiramente sub-humanas. Quem as visitava conta que todas faziam as “necessidades” para um balde.

Uma terceira  “bruxa”, dita cartomante, escapou de facto,  por pouco, da perseguição judiciária da antiga polícia de investigação criminal (PIC), doravante designada Polícia Judiciária (PJ), como a seguir veremos.

Um erro terrível, da investigação dos dois crimes de sangue que estão na origem desta história, imputava ao pai do bebé esquartejado e tio da menina que guardava o bebé,  o “moleiro das Bicas”, a autoria dos hediondos crimes sanguinários. O caso era assim.

Mais adiante perceber-se-á a conexão das duas histórias aqui em relevo…

O moleiro não conseguia ter um filho com a mulher e andava em consultas num famoso médico da cidade sobejamente conhecido. Após muitas tentativas, lá conseguiram trazer ao mundo um rapazinho. Certo dia, indo o moleiro mais a mulher às suas lides, deixaram o recém-nascido ao cuidado duma sobrinha de nove anos.  E foi nesse dia que tudo tragicamente aconteceu. Os dois infantes sucumbiram e foram pois alvo de um crime atroz. Posta a Polícia Judiciária em campo conta-se que o pai dos infelizes, o moleiro, foi objecto das mais vis torturas, na cabeça, com direito ainda a “tortura do sono”.  O caso moveu e apaixonou multidões  pela cidade, tendo o ilustre médico sido ele próprio testemunha do pobre e malfadado pai. O médico era testemunha forte do amor com que tinha sido trazido ao mundo aquele bebé. A família do moleiro não se conteve com a decisão judicial e foi à lide. Este, chorava tanto que impressionava quem o via naquele pranto. Dava dó assistir a tanta agonia. A justiça existe e o desgraçado haveria de ver a verdade vir ao de cimo, criam. Feitas diligências apareceu então por acaso e por sorte, escondido numa arrecadação, um machado com sangue, pronto que estava para ser queimado com outros haveres…  Tinha sido usado como arma do crime pelo irmão do desafortunado e pobre moleiro . Não há crimes perfeitos e aqui também não houve. Foi assim. Um dia, tendo o moleiro saído para o trabalho mais a mulher, o seu irmão infiltrou-se na sua casa com o intento malvado de lhe  furtar o dinheiro que aqueloutro amealhara e  escondera por falso forró, junto às telhas. Dando com as testemunhas, o invasor, possuído pelo demónio e seus seguidores, logo as liquidou com vários golpes. Ao bebé, começou por lhe cortar uma perna mas resolveu friamente acabar com o resto, não lhe poupando a vida. Quanto à rapariga de nove anos, atirou-lhe de pronto com o machado e, de um só golpe, assassinou-a ali mesmo, sem qualquer ponta de piedade. Ouvido nos autos tentou justificar-se dizendo que não pretendia matar o bebé…

No que concerne ao  investigador da PJ, personalidade que veio a casar para uma aldeia num monte, outrora dito alvo, era conhecido pela  suposta crueldade dos seus métodos de inquirição.

Terá sido numa dessas sessões intermináveis que descobriu ter o moleiro consultado na charneca da já referida vila, no caso, uma cartomante, a qual, deitando as cartas, apontou como autor dos dois macabros crimes, “alguém da família”, leia-se, do próprio moleiro.

Viviam-se tempos do Estado Novo e era crime “deitar cartas”. A polícia não esteve para meias medidas e pôs-se ao caminho. Entrou pela charneca adentro e logo surpreendeu a dita “bruxa” com vasta clientela à porta. Muitos, vinham do outro lado do Tejo. Era um corrupio de gente. O negócio prosperava e a fama aumentava de dia para dia.  Surpreendida em flagrante, a cartomante foi logo metida numa carrinha.  “Levaram-na logo de seguida”, conta uma das minhas testemunhas, octogenária. Mas a história não acaba aqui. Não senhor. Mais acima, havia concorrência. Junto ao lavadouro da Fonte do Ti Luís, uma outra cartomante,  lavava a roupa, quando viu chegar dois sujeitos bem vestidos e engravatados. Pediram-lhe os seus serviços. Ao ver os “executivos” logo pensou para com os seus botões” vou fazer aqui umas notas”. Deitadas as cartas pediu-lhes que as dividissem em três. Por três vezes o disse mas eles insistiam em dividir o baralho em dois… “Assim não pode ser, assim não funciona”, terá afirmado. Como resposta os homens sacaram do cartão da judiciária e a pobre lavadeira lá foi enviada na carrinha mais a concorrência. Diz quem sabe que a primeira “bruxa” tinha muito mais clientela. Andam por aqui invejas, de certeza.

Essas coisas não são inocentes. Em terras pequenas funciona muitas vezes não só a inveja, como a  intriga. Palavra puxa palavra e já andavam a denunciar uma terceira cartomante moradora na própria vila. Sabedora das denúncias – não sabemos o que as cartas lhe diziam…-  correu a se esconder. E escapou à saga persecutória.

A mente humana tem insondáveis interesses.

No  final do século XVII deu-se a célebre perseguição conhecida pelas “Bruxas de Salém’ em que as vítimas acabavam quase sempre enforcadas (dois terços das condenadas). Destino igual  às “bruxas” daquela antiga colónia inglesa estaria por certo reservado para as nossas cartomantes, se os séculos fossem outros. O pecado de Caim persegue o homem desde os começos do mundo e veio para durar segundo as escrituras…

Quanto aos métodos da inquirição ( tortura, pois), temos aqui um caso para os investigadores.

Quis o acaso que tivesse podido “entrevistar” um dia uma das cartomantes  já centenária. Também conheci e trabalhei com um dos filhos do famoso médico que tinha por  chauffeur um tio-avô meu. E sou amigo há mais de meio século de uma das visitas da prisão das ditas e pobres “bruxas”. Sempre ouvi falar deste caso desde muito cedo. São histórias assim que nist falam da sociedade da época. O seu valor ultrapassar em muito as citações das actas e dos relatórios oficiais. São outros olhos.

Qualquer coincidência com a realidade é pura ficção.

José Luz (Constância)

PS- não uso o dito AOLP

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