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Houve tempos em que gostava de ir até ao parque da cidade, principalmente aos domingos, dia em que as pessoas vestem roupas menos gastas e experimentam outros sorrisos.

Almoçava um iogurte com bolachas, colocava um adesivo no dedo grande do pé (por causa da unha encravada), umas gotinhas de perfume, uns quantos rebuçados do Dr. Bayard no bolsito do casaco, e depois lá seguia pela borda do passeio até ao parque.

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Talvez o fizesse para fugir da casa demasiado silenciosa, da quietude dos retratos, dos ponteiros parados no relógio da cozinha, dos programas de televisão aborrecidíssimos. Talvez por causa da tortura da torneira mal vedada da casa de banho, sempre ping ping ping, do desconforto da poltrona, do telefonema da minha irmã, a meio da tarde, para saber como estou, sempre aos berros: – Não abuses dos fritos! Talvez para evitar ver-me nos espelhos do corredor, onde já não bem eu, antes um velho parecido comigo, talvez para fugir da vizinha do andar de cima, constantemente a tossir em altos decibéis, uma coisa que me despoleta espasmos idênticos a choques elétricos.

No parque da cidade eu era livre durante algumas horas. Parava na esplanada para beber um Trinaranjus, ver os patitos pequenos atrás das mães, contemplar o céu entre as árvores com as nuvens a passar, uma a uma. De quando em quando, ia até ao pontão dar umas migalhas aos peixes. Certa vez, distraído, atirei-lhes os comprimidos da tensão e as carpas ficaram a nadar de costas, um bocado enviesadas. Coitadas.

Pelo fim da tarde, cruzava-me sempre com a Lurdes, uma moça da minha geração, que ia ao parque passear o caniche. Também ela com a juventude já toda amolgada, dioptrias e dedos curvos das artroses, os peitos enormes, as madeixas roxas amparadas por quilos de laca e lábios besuntados de batom. Falava-me da viuvez blá blá blá, do tamanho das noites, da solidão e dos pés frios blá blá blá, lá pelo meio a convidar-me para um chá de camomila e eu a dizer que sim, claro que sim, um dia destes, quando na verdade… Deus me livre!!

Agora os tempos são outros.

Aos domingos, uma funcionária do lar chamada Maria Adelaide, que tem os dedos cheios de anéis e usa brincos que mais parecem pires de café, empurra-me a cadeira de rodas até ao jardim, nas traseiras do asilo, e deixa-me para lá, com uma manta de cachemira sobre as pernas, voltado para um muro cheio de musgo, onde uma vez por outra passa um cortejo de formigas e memórias de guerra que não me fazem falta nenhuma. Verdade seja dita: pelo menos não estou lá dentro, junto dos outros, que cheiram a velhice, bufas e remédios, com fiozinhos de baba a escorrerem pelos cantos da boca.

A cadeira de rodas é um disfarce. Um truque de ilusionismo a que recorro, assim como fazem as perdizes que se fingem mancas para dissuadir os predadores. A cadeira de rodas é uma espécie de naperon de crochet sobre um móvel, cuja verdadeira missão serve somente para esconder a camada de pó! As auxiliares do lar sentam-me aqui e julgam.me muito aconchegado e arrumadinho, sempre preocupadas em que eu não tremelique quando abrem uma porta. Palermas! Mal sabem elas que ando há vários dias a tirar o azimute ao muro e até já testei o bater das asas.

Amanhã é domingo.

Hei-de barbear-me cedo e depois do banho vou dar um toque de graxa na franja e nas patilhas. Coloco um adesivo no dedo grande do pé (ainda a unha encravada) e claro, não podem faltar umas gotinhas de perfume. Ao almoço, acabarei por desviar umas côdeas de pão, para o caso de ir até ao pontão, e depois é só esperar pelo momento em que a Maria Adelaide me vai encaminhar para a frente do muro e aconchegar a manta de cachemira sobre as pernas. Devolverei com um sorriso enternecido e de muito apreço. Quando me voltar as costas… adeus menina que se faz tarde! Piro-me daqui qual Sandokan, tigre da Malásia! Talvez até deixe à Maria Adelaide um bilhete na cadeira a agradecer e que não se preocupe, que me fui embora juntamente com o cortejo das formigas.

Voltarei ao parque para beber um Trinaranjus na esplanada e tornar a ver os patitos pequenos atrás das mães e o céu entre as árvores, com as nuvens a passar, uma a uma. Um bocadinho de sorte, e talvez ainda a Lurdes ao fim da tarde, a convidar-me para um chá de camomila e eu a dizer que sim, claro que sim, um dia destes, quando na verdade… Deus me livre!!

Qualquer brilho pequenino é melhor do que este escuro.

Telmo Mendes

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