Entre cinzas e promessas que se acumularam durante anos, eis o que já parece não chocar: Portugal está a arder. Outra vez.
E não arde há um, nem dois, nem três dias. Arde há semanas. E não é apenas a paisagem que se desfaz em brasas. É a paciência de um povo inteiro que se consome com ela. As chamas devoram o interior, mas não são só árvores que caem. Infelizmente, é a herança que se desfaz, são as casas que deixam de ter paredes, é a memória das aldeias que se perde no fumo.
Sou uma nortenha orgulhosa que escolheu viver no interior, no centro do nosso país. Procurei durante tantos anos pelo lugar que me fizesse sentir completa e, quando finalmente o encontrei, numa aldeia ribeirinha do Tejo, sinto agora que o estão a tentar apagar da forma mais desumana. As chamas ainda não chegaram aqui. Ainda. Mas quem me garante que amanhã não chegarão? Ou no próximo verão? Quem me garante que não verei a minha casa, a terra que escolhi para ser feliz, virar capa de jornal com enormes manchetes a gritar: “Destruição total”?
Vão ser as promessas a proteger-nos? Aquelas que se ouvem há anos? Essas mesmas promessas, feitas em discursos inflamados que nunca tocam o chão onde a terra arde?
Todos os verões assistimos ao mesmo ritual: políticos de mangas arregaçadas a jurarem que “desta vez será diferente”, enquanto as televisões nos mostram o mesmo cenário de sempre. Bombeiros exaustos, aldeões a despejar baldes de água contra o impossível, animais a fugir sem destino, rostos negros de cinza e olhos cheios de lágrimas. A boca seca e uma sede que não se mata com água, mas com verdade. E a verdade é que já não acreditamos.
O que se repete já não é tragédia: é abandono.
Arde o interior, porque o interior foi esquecido. Arde o interior, porque o interior foi deixado à sorte. E quando as chamas chegam, não é apenas o grande e belíssimo manto verde que se perde. É uma identidade inteira a ser reduzida a pó.
E pergunto: quantas vezes mais? Quantos verões ainda têm de queimar para que se perceba que não é só a mata que se perde, mas a casa comum de todos nós? Porque não é um problema “lá longe”. É aqui, é dentro de nós! Quando uma aldeia arde, não é só o mapa que fica ferido: é a alma coletiva que encolhe, que se apaga, que fica mais pequena.
Os portugueses estão cansados de esperar. Cansados de promessas que se transformam em cinzas antes de chegarem a ser realidade. E há um momento em que a fadiga se transforma em revolta. Talvez seja este o momento.
Este meu desabafo nada tem de político. Porque, quando se assiste à perda de tudo: de raízes, de paredes, de horizontes e, ainda assim, se insiste em acreditar, não é ingenuidade: é resistência. É a forma mais pura de humanidade. Essa capacidade teimosa de esperar pela chuva, de replantar depois das cinzas, de acreditar que o chão queimado pode voltar a dar vida. Essa esperança não se decreta nem se promete em discursos: vive dentro das pessoas comuns, aquelas que todos os anos reconstroem com as próprias mãos o que o fogo levou.
E talvez seja aí que ainda exista a centelha que o mundo parece ter-se esquecido: a de ser humano, apesar de tudo, contra tudo, no meio de tudo.
O nosso país pode ser pequeno, mas o silêncio que o envolve quando arde é imenso. E, no fundo, o que está a ser consumido não é apenas território. É futuro. É pertença. É casa.
E se a nossa casa arde, de que serve ter ainda a chave no bolso?
SANDRA MAY
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