O comboio seguia num ritmo monótono, embalando os pensamentos de quem ia ali. Do meu lugar, junto à janela, como já é habitual, observei um casal sentado à minha frente. Tornei-me automaticamente espectadora das suas vidas, ainda que eles não se tivessem dado conta. Mas quem repararia? Uma escritora a rabiscar tudo o que lhe vem à cabeça não é propriamente a visão mais atrativa. Mas o casal… o casal era.
Não eram jovens, mas também não pareciam velhos. Transmitiam uma desconexão quase palpável entre eles e o mundo. Não estavam preocupados com os olhares alheios, como o meu. Viviam o seu instante. Ele segurava um livro, mas os olhos não me pareciam saber acompanhar as linhas. As suas sobrancelhas denunciavam-no sempre que fazia um ponto de interrogação com a testa. Ela olhava pela janela, serenamente, como se procurasse algo no horizonte que só ela pudesse ver. Como se apenas ela soubesse o que estava a procurar.
Entre eles, não trocavam palavras, apenas silêncios. E, ainda assim, era impossível não reparar na distância entre ambos, apesar de estarem tão próximos. Ele mexia no livro, inquieto. O som das páginas revelava uma crescente frustração. Ela suspirava, perdida nos pensamentos. Imaginei que talvez pudesse estar a ler os meus, porque ultimamente tenho vivido aquela sensação. Era como se cada um estivesse preso num lugar onde o outro não conseguia chegar. Como se juntos tivessem deixado de ser inteiros.
Até que, então, aconteceu. O tão esperado movimento. Foi tão pequenino que quase passou despercebido. Aos meus olhos, foi o puro êxtase de um espetáculo.
Ela virou-se para ele e, sem dizer nada, pousou a mão sobre a dele. O toque. Foi tudo o que bastou. Ele olhou-a, e naquele instante, algo mudou. O comboio deixou de ser monótono e os pensamentos dispersos organizaram-se. Não foi uma conversa que começou, nem um sorriso ensaiado. Foi o momento. Um instante que parecia conter tudo. Tudo o que esperamos uma vida para encontrar.
E não pude deixar de me perguntar: Quantas vezes estamos assim, tão perto de alguém, mas tão distantes de nós mesmos? Quantas vezes deixamos o agora escorrer pelos dedos, porque estamos demasiado presos ao que já passou ou ao que ainda não chegou?
O presente é como aquela mão pousada sobre a outra. Um gesto com o poder de nos ancorar. Não grita por atenção, mas oferece tudo. Só precisamos de estar lá para o aceitar.
Foi então que decidi dar-lhes privacidade. Desviei o olhar. Olhei pela janela, mas tudo o que sobressaía era o reflexo deles. Tentei focar-me na paisagem desfocada pela velocidade, mas os meus olhos procuravam-nos. Não resisti. Voltei a observá-los. Foi quando vi o agora.
Agora, ele tinha pousado o livro, e ela sorria, ainda que de forma discreta e quase tímida. Não sei o que mudou entre eles naquele instante, mas sei o que mudou em mim.
Quando o comboio parou na estação seguinte, eles levantaram-se e saíram, deixando para trás o eco de um momento que nunca mais voltará. E eu fiquei ali, com a certeza de que a vida não espera. Ela acontece. Agora.
SANDRA MAY
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