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Tenho de confessar que até me regala ver os pratos que dantes eram meus agora a fazerem bonito nas paredes da casa da minha neta. Sobretudo porque são aqueles que eu tinha mais ao uso – hoje carcomidos, alguns com cabelos e gatos – que ela guarda mais junto ao coração. Os outros, que ela tem arrecadados num armário, de uma loiça mais fina, estão menos rachados e comidos de cor do pouco que serviram, pois só em dias de festa e ajuntamento familiar sucedia eu tirá-los do abrigo do aparador.

É grande a cegueira que leva muita gente douta a duvidar do papel da fé na vida dos homens, já que nem sempre é possível encontrar as causas mais enterradas para os efeitos que se dão à vista dos olhos. Bastas vezes o que vemos não vemos, e devemos crer que assim é. Mas se alguém perguntasse à minha neta se ela cria, em Deus ou na imortalidade da alma, logo ela haveria de responder, ligeira, que não senhor, que não crê em nada disso.

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No meu tempo, se queríamos amornado o leite do desjejum, não tínhamos outro remédio se não aquentá-lo num púcaro deitado ao lume, mas desde que me finei deu-se no mundo uma grande mudança. Ele agora é tudo pressas e facilidades, e a minha neta aquece a cada manhã a sua chávena de leite numa caixa chamada micro-ondas, onde o lume se não vê. No fundo a mesma coisa se passa com a fé, porque, ainda que invisível, a chama da alma que sou continua acesa, e eu bem sei que ela me sente de roda dela às vezes, que bem a vejo sorrir das graças que lhe digo para tentar desmontar aquele ar sisudo que ela bota na cara todos os dias.

Causa-me muita estranheza ver o meu velho alguidar de barro de amassar o pão, agora todo cascado já se sabe, a morar numa casa onde não há sequer um forno a lenha. Nem tanques hoje há para se lavar a roupa, ele é tudo maquinaria, electricidade e modernices. Mas em vez de sobejar dentro de uma casa o tempo, parece haver cada vez menos vagar para viver esse tempo que afinal não sobeja.

Diz que não acredita que a vida continue após a morte dos corpos, mas nalguma parte secreta ela sabe que eu, mesmo estando falecida vai para meio século, me quedo por aqui à sua beira, a aquecer-lhe os dias frios com a minha presença. Não crê mas sabe, o que não faz mal nenhum, porque ao fim e ao cabo crer e saber são no fundo duas regiões que pertencem ambas à vasteza do mesmo país que é a pessoa humana.

Até porque há na casa dela a modos que uma relembrança de vozes passadas que desapercebida não lhe pode passar de nenhum jeito, pois que se manifesta com frequência no pequeno acidente caseiro; a jarra que desaba do móvel e se escaqueira no chão, o bule de chá que lhe voa da mão e se esmigalha todinho. E a cada desastre, a alma dela, coitada, que é muito apegada às miudezas sem serventia que guarda em casa, chove pelos olhos enquanto ela, agachada no ladrilho, junta os cacos para os meter de seguida em caixinhas que são, bem vistas as coisas, pequenos túmulos para restos mortais de vidro ou porcelana, aos quais ela depois cola pequenas lápides de papel com dizeres fúnebres escritos a lapiseira. Por exemplo: Candeeiro a petróleo da avó Angelina. Como se tivesse sentido, valha-te Deus cachopa!, o agastamento que tu sentes pela sorte dessas velharias que nem tão pouco sabem o que é a morte.

Há um jogo de espelhos em que o que aparenta ser reflexo é a verdade primeira que reflecte, e assim parece que fui cá chamada pelos meus pertences de antes de me ter finado, e que hoje andam espalhados pelos quatro cantos da casa da minha neta, mas está do avesso o retrato tirado, porque eles é que foram sendo arrancados da fundura das gavetas e dos baús pela luz da minha presença ao pé dela.

A colcha de renda com franjas de rabo de porco que eu lhe fiz, era ela menina pequena ainda, e que era usança dantes fazer de presente às netas, tirou-a ela agora mesmo da arca. Olhem, agora estende-a por sobre a cama e bota-se a girar pelo quarto, enquanto olha, a cismar se gosta ou se não gosta de ver, homessa, como se gostar ou não fosse uma decisão que a gente toma ao depois de funda reflexão.

A mim o que me demora junto da minha neta, que conheço de ginjeira, é o seu feitio daninho, que tem derivação do meu, que nunca fui em vida boa de assoar. Afinal, quem sai aos seus, não degenera, pois não é assim? Mas o que é certo é que nestes muitos anos que se passaram desde que parti aprendi muita coisa. Eu que fui em vida uma pobre analfabeta, sou agora versada em muitas matérias e conhecedora de muitos mistérios.

E porque a eternidade de Deus Nosso Senhor pode muito bem esperar por mim mais um poucochinho, vou ficar-me por aqui a ver se ajudo a aliviar do pesado jugo o fado, pois ela, vivendo, teima em olhar para trás, remoendo sucessos passados que tem de aprender a esquecer; mas eu que estou defunta faz tanto ano posso levá-la a virar-se para diante, que é tudo uma questão de rodar sobre ela mesma, como faz no fim de contas todos os dias a nossa grande mãe Terra.

Olhem, acaba de resolver que gosta afinal de ver a colcha na cama. Eu cá por mim acho que fica bonito, dá ao quarto um ar mimoso e que chama, à noite, um tranquilo repouso.

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