Protesto do padre de Constância, António da Piedade, contra a incorporação dos bens eclesiásticos no Estado
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Um padre de Constância protestou contra a incorporação dos bens da igreja no Estado (1911). António da Piedade lançou «o grito de uma alma ofendida em nome da Liberdade clamando contra o direito da força que esmaga e aniquila a força nobre a santa do Direito». Até aos anos 80 ainda se ouvia na vila que o padre dos tempos republicanos teve de fugir para o Brasil.

Com a proclamação da República em 5 de Outubro de 1910 seguiu-se em Portugal um gravíssimo anticlericalismo em que predominava o ideário positivista e jacobino do Partido Republicano. A legislação dos primeiros meses do regime então imposto, marcadamente anticatólica, levou imediatamente a perseguições contra a Igreja, com o exílio forçado e indiscriminado dos Jesuítas. Retomavam-se assim leis pombalinas alimentadas pela crença materialista da criação de um «homem novo». Esta crença dita vanguardista, plena de referências místicas de pendor maçónico, tinha feito o seu caminho no final do período monárquico. Aquilo a que chamaram então a «República» levou ao extremo a perseguição à Igreja, às Ordens e Congregações. A história há-de fazer justiça contra as humilhações públicas que o regime aplicou aos padres jesuítas, em particular.

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No dia 21 de Agosto de 1911, no profundo Ribatejo, na pacata vila de Constância,  compareciam na Igreja Paroquial de São Julião, José Eugénio Nunes Godinho, Administrador do Concelho de Constância (que gostava de praticar tiro ao alvo contra a matriz segundo um testemunho publicado nos anos 90 no jornal Abarca), João Soares Esteves, membro da Junta da Paróquia (indicado previamente pela Câmara Municipal) e, Filipe Augusto Pinheiro, Secretário de Finanças e da Comissão Concelhia de Inventário. Finalidade da reunião? Principiar o arrolamento e inventário dos bens, atente-se, «para os fins consignados no artº 62 da Lei de Separação das igrejas do Estado». (1)

A Lei de 20 de Abril de 1911, segundo alguns, tinha tido influências brasileiras e francesas.   Na expressão de Afonso Costa e, seguindo de perto o sítio da internet do Portal da história (2), «a lei assentava no princípio de que a propriedade dita eclesiástica era, na realidade, propriedade nacional posta ao serviço da Igreja, princípio igualmente revolucionário e subversivo, ao menos na sua prática. Se aplicada com rigor e constância, a Lei da Separação laicizaria de facto o Estado e abateria, de uma vez por todas, o poderio eclesiástico, descendo até às ‘raízes do mal e arrancando-as’».

Nos documentos do Ministério das Finanças a que o autor da presente crónica teve acesso consta um  facto  digno de realce: um corajoso e veemente protesto do padre da freguesia, António da Piedade Marques, contra esta nacionalização encapotada dos bens eclesiásticos. Numa carta dirigida então ao Presidente da Comissão do Inventário  dos Bens Eclesiásticos, escrita em Constância e datada de 21 de Agosto de 1911, o prelado é inequívoco: «Digne-se  V. Ex. cia juntar este meu protesto aos demais documentos do inventário».

E se dúvidas houvesse, a leitura do texto as dissiparia: «Protesto solenemente contra a operação do inventário a que agora se vai proceder incorporando nos bens do Estado os bens sagrados cuja posse, uso e guarda só à Igreja pertence, para veneração do culto e sustentação dos seus ministros. O meu protesto tem a ressonância perene da Verdade, o ideal puríssimo da Justiça que o assina – não é um protesto platónico – é o grito de uma alma ofendida em nome da Liberdade clamando contra o direito da força que esmaga e aniquila a força nobre a santa do Direito».

Trata-se sem margem para dúvidas, pode ler-se, de um «protesto sem rebeldia, obedecendo às leis que não se oponham à minha consciência porque mais vale obedecer a Deus que aos homens».

Nos anos 80 recolhi alguns testemunhos orais sobre o exílio no Brasil do padre de Constância. Augusto Alves Soares (nascido em 1911)  e Maria José Cardoso Fonseca (nascida nos anos 20) falavam disso. A vila de Constância,  tradicionalmente católica viu na altura suspensas as suas manifestações de culto público (caso da procissão da Nossa Senhora da Boa Viagem, o que ouvi a pessoas idosas). Sabe-se também, pelo expediente da Santa Casa, que o administrador do concelho proibia o capelão da irmandade de andar de batina.  Ruas com nomes de santos passaram a ter nomes de figuras suspeitas do braço armado da maçonaria. Imagens icónicas católicas eram atiradas da ponte abaixo, dizia-se.  Na casa do republicano José Eugénio de Nunes Godinho há muito que se promoviam reuniões em que participavam figuras como António José de Almeida (o que sempre ouvi às filhas da empregada da mansão). Na rua do Outeiro havia mesmo uma casa com arsenal da carbonária. Conheci um herdeiros desse imóvel que me passou o testemunho duma antiga tia.

A população, porém, marcadamente católica e  monárquica, não se podia confundir com os mandatários locais do novo regime. Poucos anos antes da implantação da República a vila tinha recebido com pompa e circunstância,  o rei Dom Carlos I. A vida do locais sempre girou em torno da Santa Madre Igreja.  A população, desde os tempos liberais, apoiava a monarquia absolutista. Caso do apoio a Dom Miguel I na Igreja matriz e do apoio ao seu exército (ler para o efeito os relatos da Gazeta de Lisboa).

É facto sobejamente comprovado que a esmagadora maioria da população sempre foi baptizada e frequentadora dos ofícios divinos.

O documento do Ministério das Finanças sobre o inventário dos bens eclesiásticos da vila tem cerca de 24 páginas. Começa com a descrição de «um cálice de prata lavrada de fabricação antiga com figuras em alto relevo, representando diversas cenas da Paixão, com a respectiva patena colher e estojo, com o peso de mil trezentos a oitante gramas». Seguem-se: nove cálices de prata, um vaso de prata para a comunhão,  quatro colheres(?), dois píxedes,  dois castiçais,  uma coroa, quatro resplendores, um diadema, tudo de prata. E ainda: um cofre de tartaruga, uma concha para o baptismo,  uma coroa, um prato, uma coroa e um vaso de prata da Boa-Viagem (não indicam o peso), um galheteiro (não indicam o peso). O peso total das pratas importa em 10478 gramas.

Ouro? Temos nota de: um cordão de ouro com medalha, dois cordão de ouro, um alfinete, dois fios,  dois botões, um botão partido (sem peso) – peso total do ouro?  83 gramas.

No inventário consta, por exemplo: a menção de uma certidão de alvará pela qual são extintas as confrarias e capelas; uma colecção de cartas do bispo da Guarda de 1862; a menção da existência de 162 jarras, entre todos os ricos e antigos paramentos.

No que se refere aos quadros e imagens existentes na igreja de Nossa Senhora dos Mártires de que é orago São Julião: «um quadro a óleo apresentando a imagem de São Francisco d’ Assis; um dito idem, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição; um dito idem adaptado ao tecto  representando Nossa Senhora da Conceição (de Malhoa); um dito idem no Baptistério alusivo aos baptismos; um dito idem na Capela do Santíssimo representando a Ceia do Senhor; uma imagem da Senhora dos Mártires a qual é a padroeira; uma dita de São Julião; uma dita de Santa Bazaliza; uma dita da Senhora da Piedade com o Senhor nos braços; uma dita da Senhora da Boa Viagem; uma dita de  São Pedro; uma dita de São João em mau  estado; uma dita da Senhora do Rosário; uma dita do Mártir Santo (São Sebastião); uma imagem de São Miguel; uma dita de São Francisco; uma dita de Santa Rosa (actualmente da invocação equívoca de santa Isabel, crê-se); uma dita do Senhor Morto».

Pode ainda ler-se, por exemplo: «Na torre da igreja (…) existem quatro sinos grandes e uma sineta; existe ainda uma sineta a um dos lados da capela mor».

Digno de atenção é o registo dos Bens imobiliários:

«Um edifício em estilo gótico (…) com altares e capela mor de mármores de Itália, tendo como púlpito em alto relevo, e campanário em cantaria, destinado ao culto e denominado Igreja da Senhora dos Mártires, sendo o orago São Julião; está situada no alto denominado de Nossa Senhora e confronta  do norte com cemitério público, nascente Rua da Roda, sul José dos Prazeres Duarte Coimbra e frente com o adro da mesma igreja.

Uma capela denominada de Sant’Anna sita na Rua Marques de Pombal nesta vila (?) Constância e que confina do nascente com a referida rua norte e poente com Vicente Freire Themudo Annes de Oliveira e do sul com Joaquim da Costa. Nesta capela existe uma imagem da Senhora Sant’Anna e uma (?) pequena Santo António. Tem uma sineta.

Outra capela denominada Santo António no sítio do mesmo nome ao sul do Tejo e que confronta do nascente norte  e sul com Dr Francisco Augusto da Costa Falcão e do poente com o respectivo adro. Nesta capela existe uma imagem de Santo António em pedra e uma outra de São Francisco. Tem uma sineta.

Pertencentes à Junta da Paróquia

a) Uma pequena casa  térrea no sítio do adro da igreja que confronta pelos lados do nascente e sul com o  mesmo adro poente com António Silva e norte com herdeiros de D. Eulália Falcão.

Um cerrado com oliveiras no sítio Cimo da vila que confronta do nascente com herdeiros de D. Eulália Falcão sul com rua Alves Calado norte com estrada distrital e poente com rua Annes de Oliveira».

 José Luz, Constância.

(bisneto de Mafalda da Costa Saraiva,  de Seia, prima carnal do republicano Dr Afonso Costa)

 PS – não uso o suposto AOLP.

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