Quase quatro anos sobre o falecimento de «Zé Brasileiro» nada se sabe sobre o destino do espólio da Casa-Museu Vasco de Lima Couto. De seu nome José Ramôa Ferreira, dispensa apresentações. Na presente crónica vou procurar dar relevo a uma das suas iniciativas de boa memória: a «Galeria de Constância».
«A Galeria de Constância é só por si um projecto de inegável relevância cultural. E é um acto de coragem». Assim a definia Nuno Lima de Carvalho em finais dos anos 80, homem das artes (formado em direito e filosofia) que chegou a privar com escritores brasileiros como Jorge Amado, Ubaldo Ribeiro ou Zelia Gattai.
Culturalmente, o nosso País, à data, em matéria de galerias de arte, era «um deserto», na opinião de Lima de Carvalho. Salvo as excepções de Lisboa e Porto onde algo efectivamente se ia passando, com alguns esforços isolados nesta ou naquela cidade, nesta ou naquela vila, na maioria dos casos, «por obra e graça de indivíduos isolados para quem a Arte e a Cultura são valores». Era o caso de José Ramôa Ferreira, conhecido por «Zé Brasileiro», na versão popularizada pela cançonetista Alexandra, de seu nome Maria José Marques Canhoto Gaspar. O Zé, amigo, de saudosa memória, tinha fundado a «Galeria de Constância» por volta de 1986/1987 tendo a sua actividade sido desenvolvida por um espaço que, creio, ocupou quase uma década.
A Galeria, ali, nas Ribeiras do Tejo, longe do bulício da Grande Lisboa, estava fora do alcance das redacções dos jornais, das ondas da Rádio ou dos noticiários da T.V. Um dos aspectos, característica, que Lima de Carvalho, num belo texto divulgado numa exposição (em 19 de Dezembro de 1987) realçava. O contexto era o de uma exposição transdisciplinar onde a pintura, o desenho e a cerâmica marcavam o ambiente.
A Galeria de Constância definia-se como um projecto que resultou do querer de um homem simples para quem a Cultura representava algo de muito valioso e de transcendente. Cedo ganhou raízes, tendo produzido cerca de duas dezenas de mostras Colectivas de Arte.
Palco representativo de uma diversidade de linguagens plásticas, acolheu a obra de algumas das correntes mais significativas da Arte contemporânea portuguesa. Exemplos?
Mário Cesariny um dos maiores poetas portugueses Contemporâneos. Cesariny, transferiu para a tela «a força e o mistério da sua poesia», afirmando-se por isso, e pelo domínio total dos segredos da Arte, de Cor e das Formas, «um dos maiores pintores do nosso tempo».
Augusto Barros, o «abstracto» que, seguindo de perto Lima de Carvalho, leia-se, «se recolhia, numa humildade extraordinária dos cinzentos de vários tons dos velhos muros de Paris».
Francisco d’Almada, inventor de uma linguagem que no dizer de Lima de Carvalho, «em poucos anos se firmou com o elemento feminino como núcleo e um erotismo poético subjacente à composição que muitos gostariam de poder manejar com a facilidade com que ele o faz».
Manuel Cargaleiro, rei das cromias raras, isto é, «Campos de flores e catedrais, construções de cidades e mundos diversos», onde a cor, diz Lima de Carvalho, «quase entontece em explosões cromáticas que namoram os nossos olhos de latinos ávidos da luz e da cor».
Jorge Barradas, percursor da Cerâmica moderna portuguesa, senhor no desenho e na pintura, autor multifacetado e vário, mestre de outros mestres.
Lucília Moita, pintora ligada ao naturalismo, de Alcanena, que escolheu a cidade florida, Abrantes, nos anos 50. Nas suas composições harmoniosas adensava-se de forma única, o mistério, nos azuis e cinzas, «o que ela sabia juntar como ninguém».
Francisco Relógio, cuja obra inicialmente surge articulada ao neo-realismo segundo a crítica conhecida. Dono de uma linguagem única, um desenho que lhe pertence em exclusivo que utilizava «com um jeito amoroso de artista sensível», parafraseando Lima de Carvalho. Oferecia-nos «quadros fantásticos do seu Alentejo de montados, searas e suas gentes, de uma humanidade sem igual».
Rico Sequeira, autor de grafismos vários, intérprete de uma personalidade singular, «conhecia todos os segredos recônditos da construção de pequenas coisas belas», nas palavras do nosso proemista.
Cecília de Sousa, ceramista, antiga aluna de Cargaleiro, com nome firmado, «a senhora que domina o fogo e o barro, com painéis, azulejos, placas, vasos de muitas formas e feitios. A autora completava assim o «grupo dos 9» onde, dizia Lima de Carvalho «cada um é igual a si mesmo e participa num conjunto vário e bem representativo que as boas galerias de Lisboa não desdenhariam apresentar».
Artur Bual, Isabelino, Maria Adelaide Lima Cruz, Paulo Ossião, António Araújo, Chichorro, Dorita de Castel’Branco, João Fragoso, Lima de Freitas, Martins Correia, Querubim Lapa, Gil Teixeira Lopes, Cruzeiro Seixas, Raúl Perez, Sérgio Telles, Paula Rego, Santos Lapa, são alguns, outros, nomes, artistas modernos, acolhidos na extinta «Galeria de Constância». Um espaço que anos 50 serviu de local de ensaio do Rancho «Flores de Constância», fundado pelo maestro Carlos Amadeu Saraiva Silvares de Carvalho. Onde também funcionou um armazém de mobílias de Aulânio Rocha Mira e sócio.
O Zé, detentor de uma grande capacidade crítica, deixou-nos alguns registos sobre a sua/nossa galeria: «Com alguns erros, como é natural, a Galeria de Constância, procurar ir ao encontro de Artistas Independentes, que estejam ou procurem estar integrados na Arte Universal e por conseguinte mais próximos da nossa realidade».
Passados os tempos de genuína autenticidade de uma Pintura Portuguesa, como Nuno Gonçalves, Grão Vasco e Mestre do Sardoal e, citando o Zé, «entrou-se numa fase de vazio, em grande parte provocado pela política de bolsas de estudo para se aprender a pintar no estrangeiro». A nossa pintura perdeu a sua identidade «deixando caminho aberto a «grupinhos«, capelinhas sociais e compadrio, para o gasto doméstico, sem interesse nos outros países».
O Zé, Zé Ramôa, deixou saudades. A sua Casa-Museu Vasco de Lima Couto era ponto de passagem obrigatória nas minhas idas à vila de Constância nas últimas décadas. Para o Zé, a obra de arte não admite classificações! É a expressão máxima de liberdade entregue à humanidade. É o meio de comunicação libertado de uma sensibilidade – trágica, alegre ou torturada – que, «denuncia com profundidade, um Tempo e um Espaço». A obra de arte – bem o afirmava – «pode ser aceite ou recusada, conforme as sensibilidades com quem trava diálogo». Crítico severo dos «chamados especialistas» inventores da «Ditadura da Cultura» atribuía a sua origem à sociedade de consumo e à influência das «grandes ditaduras». O Zé, homem muito trabalhador, persistente, de objectivos fixos, às vezes um pouco imobilista, sincero, porque autêntico, delator dos tais «especialistas» – de terem «uma atitude ridícula de auto-suficiência», acusava-os ainda de inventaram os rótulos de «cultos/incultos», conforme, se está ou não, de acordo com as suas opiniões. Quem participava e conhecia as suas publicações que
sempre acompanhavam as suas iniciativas de divulgação da arte sabe bem do que falo. Homem de vasta cultura, o Zé convidou-me no início dos anos 80 para dar corpo a várias harmonizações de poemas de Lima Couto outros autores. O que fiz e foi apresentado em Lisboa, no Palácio das Galveias.
A «Galeria de Constância», procurava estar distante das imposições das modas e compadrios e apresentava, todas as escolas e tendências, passíveis de um diálogo com os seus visitantes. Cultor das antiguidades o Zé promoveu a arte romana, azulejaria antiga (séculos XVII e XVIII), escultura e arte moderna.
No século XX, Século da Frustração e da queda dos velhos impérios, a humanidade interrogava-se. E surgiram novas visões e panos de fundo hegemónicos: «nasceu uma onda de especialistas, em assuntos de arte, filhos bastardos do Século XIX, que gritaram aos quatro ventos». Nas palavras emprestadas do Zé, os artistas libertaram-se e revolucionaram a arte! Mas os artistas, embora aplaudindo, refugiaram-se no fundo dos séculos, das Artes Primitivas e muitos começaram a coleccionar antiguidades. O Zé, artista, sim, pois! Coleccionador. Exímio. Notável.
Tinha desaparecido a classificação de Arte maior e de Arte menor. Arte, ensinava o Zé, é a carga comunicativa, que numa cerâmica, numa imagem, num quadro, numa escultura ou num móvel nos conduz ao diálogo com o passado e nos ajuda a encontrar a nossa identidade.
Só «Os filhos das ervas», como diz o Povo, poderão negar as suas raízes culturais- mais uma máxima de Zé.
As exposições da «Galeria de Constância» veículos de pequenas experiências «Diálogo com o passado e com o presente» importavam a quem gostava de apreciar a arte. Mas nunca confiando exclusivamente no gosto enquanto fenómeno da consciência. Não existindo entre nós o hábito massificado de apreciar a arte, para lá da mera curiosidade, projectos como o da «Galeria de Constância» eram uma ilha no deserto cultural. Abril ainda não tinha despertado para a revolução cultural na arte e iniciativas particulares substituíam o Estado no país profundo, aqui e ali.
Com admirável fôlego o Zé Ramôa, a par do excepcional desempenho de Manuela de Azevedo na Casa de Camões, fez/fizeram uma geração de oiro na pacata vila ribatejana que acolheu Camões, Lima Couto, Alexandre O’Neill, Manuel Mengo, Carlos de Azevedo, ela também berço de escritores como Tomaz Vieira da Cruz ou Elviro da Rocha Gomes ou num outro plano, Meira Burguete para não citar outros da plêiade, menores mas importantes à sua escala.
Como entender a arte, as artes? A arte, simplesmente, acontece, no autor e no apreciador, os dois a interpretam. Não, não é só fumaça. O que o autor criou, importa, sim, senhor. O autor/criador, não é apenas o resultado das redes de significação. O autor faz parte da obra. Nisso consiste a dignidade e a sua personalidade da sua obra. Qual a perspectiva do Zé Ramôa face aos estruturalistas? Será que as regras por via das quais se formam os conceitos ou contextos teóricos nas artes é que importam, por si só? O que é um autor? Qual a longevidade de uma obra? O Zé deixou-nos, sem avisar. Sem fazer testamento sobre o palacete e todo o espólio da Casa-Museu Lima Couto. Falámos sobre o destino do seu espólio mas logo o Zé, sem reparar, mudava o foco das conversas dominicais. Não tinha interesse. Desilusão ? Ou sublimação do futuro?
Não temos tido informação sobre o processo de doacção do espólio da Casa-museu Vasco de Lima Couto ao município, por parte dos herdeiros de José Ramôa Ferreira,. Foi dito pelo presidente da câmara numa reunião que «estavam a tratar disso». Fonte amiga deu-me nota da possibilidade do Município de Constância poder adquirir e
recuperar o antigo edifício onde funcionava a «galeria de Constância». Onde, finalmente, seria reinstalada a Casa-Museu Vasco de Lima Couto. O tempo passa e pode haver deterioração do espólio do palacete do Largo Avelar Mach