Era quase meio-dia. Bateram à porta, atravessei o hall de entrada e abri a porta. Eram dois técnicos que vinha reparar um aparelha eléctrico.
Ao vê-los, senti que um sentimento confuso e indiscritível, me invadia e confundia. Usavam máscaras cirúrgicas para não contaminarem nem serem contaminados pelo Covid-19. O à-vontade, cortesia e descontracção que regulam, normalmente, as relações intersubjectivas estão postas em causa. Dizem-nos que é preciso usar máscara, manter a distância social e lavar bem as mãos. Tudo a bem da saúde. A realidade ( as pessoas, a existência, os objectivos, os valores…) já não é a mesma; é diferente. Dois valores assumem papel preponderante: a saúde e o dinheiro. O desafio que o “vírus” nos coloca traz-nos em constante sobressalto. A ciência é desafiada e pressionada para descobrir, rapidamente, a vacina que nos trará de volta a verdadeira saúde (estado de bem-estar físico, psicológico, espiritual e social). A economia não pode estagnar. Os governos, na gestão dos dinheiros públicos, sejam de direita ou de esquerda, são pressionados a encontrar medidas apropriadas à manutenção da vida.
Não há volta a dar. Somos finitos, limitados e relativos. Finitos no tempo, limitados e relativos no conhecer, querer e agir. Quando interagimos com os demais, fazemo-lo de forma convencional, isto é, obedecemos a normas, rótulos, estereótipos, hábitos e costumes, dentro da cultura a que pertencemos. A pandemia que atravessamos vai obrigar-nos a pensar mais por nós próprios. Este é o meu credo.
De facto, desde pequenos somos submetidos (pela educação e aprendizagem) às crenças, mitos, ideias, ideologias. Também, desde muito cedo, inserimo-nos em redes de confiança/desconfiança, sem darmos conta disso. É normal confiar ou desconfiar de certas pessoas, ideias ou coisas e, na base dessa confiança/desconfiança, vamos construindo as próprias redes de confiança/desconfiança.
Com a presente pandemia assistiremos a certa alteração deste paradigma. Desde logo, estamos obrigados a pensar mais por nós próprios. O pensamento de não infectar ou ser infectado marca o nosso raciocínio e, por conseguinte, o nosso estar na vida. Passamos a viver sob uma suspeita generalizada que afecta as certezas que tínhamos e nas quais confiávamos. Mas, desconfiar de tudo e de todos também não é credível porque nos conduz a uma maior valorização da desconfiança.
O jogo das relações humanas que tínhamos como justo e verdadeiro, altera-se no futuro. Já não é tão normal, mas passará a ser mais cauteloso. A confiança absoluta que dispensamos aos pais, parentes próximos, amigos e até desconhecidos deve passar pelo crivo da relação equilibrada do que pensamos por confiança/desconfiança.
Pelo menos na actual crise pandémica, não é possível vivermos num ambiente de confiança generalizada que nos possibilite acreditar em todos, mas também não podemos pensar que todos conspiram para nos enganar. Haverá sempre uma aposta, um risco, uma incerteza em tudo o que pensamos, o que queremos e o que cremos. Não podemos evitar a desconfiança, isto é, a dúvida, assim como também não podemos evitar a confiança, isto é, a crença.