O ideal feminino em Camões
Neste centenário de Sebastião da Gama, efeméride a que a Casa-Memória de Camões se juntou, ocorreu-me visitar o «Diário» deste poeta filósofo, na procura de algo que pudesse contribuir para um melhor conhecimento pessoal de ambos os literatos. Na obra que escolhi, «Diário», encontram-se referências várias, dispersas, elogiosas, do valor do nosso Camões. O ideal feminino em Camões e a figura feminina em Camões, temas que Sebastião da Gama, suscita timidamente aos seus alunos no seu «Diário» e que tem ocupado os camonistas pelo menos desde o século XIX.
Seleccionei, para o caso presente, a seguinte passagem extraída das notas sobre as memórias do dia 17 de janeiro de 1949. Uma questão prévia, desde logo, a informação de que Sebastião da Gama estagiou em Português, na Escola Veiga Beirão e sintetizava no seu «Diário» o que de mais importante acontecia ou deveria ter acontecido em cada aula, sempre na perspectiva do desenvolvimento do espírito crítico de cada um dos seus alunos.
Para o caso desta crónica e com interesse: «Camões salva «Os Lusíadas». Salva-os pela boca do filho pródigo que aqui está a meu lado, feliz e grulha. Serviu o trecho para falar de Camões pela primeira vez – que é preciso começar a abrir caminho até à admiração carinhosa pelo Poeta». Anota- se a grafia em letra maiúscula como em Faria e Sousa, de «Poeta», o célebre «mi Poeta».
Fazendo o histórico da aula decorrida, Gama apresenta-nos um Camões verdadeiramente universal, como universais foram os portugueses da gesta camoniana: «De corrida («para outro dia será falar d’Os Lusíadas longamente») esbocei o plano do esquema, as causas por que surgiu, o seu significado nacional, o seu alcance. Mostrei-lhes que é este livro a carta de emancipação do Homem – que o Homem, vencendo o mar, vencera o medo, ganhara o atrevimento necessário para, finalmente e novamente, caminhar por seu pé – e que de tudo isso é reflexo ou de tudo isso é expressão «Os Lusíadas». Apontei-lhes Baco a insinuar a Júpiter o perigo de baixarem eles a homens, enquanto os homens subiriam a deuses».
À semelhança de outros críticos também se encontra em Sebastião Gama uma certa ideia feita do ideal de mulher em Camões, que se pensava mais desenvolvida e actualizada:
«Depois vimos o trecho devagarinho (é de Simões Muller), até parar em Dinamene. Vinha a propósito justificar a inconstância amorosa de Camões. Dinamene, Natércia, Bárbara… Sim: Dinamene, Natércia, Bárbara. Mas porque Camões se formara um ideal de mulher: toda suavidade e formosura, caminho para Deus, reflexo da divina beleza».
Questiona o nosso Gama – questiona os seus alunos e todos nós, claro – : «Ora, o ideal, onde está ele? Dentro de quê está ele? Dentro da nossa ideia, dizem vocês muito bem. Mas ignorante disso ou esperançoso de que não, de que a pode, à mulher ideal, encontrar aqui no chão, na realidade, vai o Poeta amando esta, aquela… Vê Natércia e ama Natércia. Convive com ela e vê que se enganou. E logo chama Dinamene… E logo chega Bárbara, aquela cativa que me tem cativo… Nenhuma é. E em todas, no entanto, qualquer coisa existe que é da mulher ideal. Pudesse Camões uni-las numa síntese, como certos pintores que para uma só figura se servem de vários modelos. Pudesse a
mulher ideal aparecer, para evitar ao Poeta o gostoso desespero de em várias flamas variamente arder. Mas como, se ela está irremediavelmente, encantadamente, dentro da sua ideia?»
Será mesmo assim? Na tentativa de encontrar os primeiros versos do poeta de «tenção» amorosa, Saraiva recupera umas redondilhas, alegadamente feitas a uma dama que Camões teria observado em um desses templos – o das Chagas:
«Foi a uma dama que ele observou em um desses templos – o das Chagas, segundo se supõe – que Luís Vaz dedicou, e não sabemos se chegaria a entregar por intermédio de alguma serviçal cúmplice, estas Redondilhas impregnadas de «tenção» amorosa:
«Peço-vos que me digais As orações que rezastes, Se são pelos que matastes Se por vós, que assim matais? Se são por vós, são perdidas; Que qual será a oração Que seja satisfação, Senhora, de tantas vidas».
Pinheiro Chagas, homem polivalente, político, jornalista, historiador, chegou a ironizar sobre versos assim, comemorava-se à época o tricentenário da morte de Camões: «Tal poesia é simplesmente uma imitação de Petrarca. Declara o poeta italiano, num soneto, que encontrou a sua Laura pela primeira vez, numa sexta-feira santa, na igreja de Avignon. Realmente parece-me história que daí por diante ficasse sendo a sexta-feira santa o dia marcado para caírem apaixonados os poetas».
Faz-lhe mal aos nervos um Camões tradicional, «de louro e lira». Já nesta época se discutia o ideal feminino na lírica camoniana. Também assim pela pena de Pinheiro Chagas, directa e assertivamente: «É verdade que o célebre soneto «Alma minha gentil…» revela um sentimento profundo e uma dor verdadeira, mas o que não se admite é que transformem um Camões ardente, apaixonado, fogoso e buliçoso, alegre e folgazão, soldado e marinheiro, instruído como poucos, num Vate sentimental que andava chorando por todos os mares do oriente a perda da sua Catarina de Ataíde».
Rita Marnoto, da Universidade de Coimbra, analisou as implicações petrarquistas da descrição da figura feminina, em Camões, tomando como ponto de referência o princípio da teoria da imitatio. Para serem bem sucedidos, os renascentistas elegiam a imitação
como princípio fundamental pelo qual deveriam pautar a sua conduta, a fim de obterem sucesso. Diz ainda a autora que «Camões satiriza os excessos a que pode levar a vontade fátua de imitar». Rita Marnoto traz à liça a carta terceira, «De Lisboa a um seu amigo (a o poeta João Lopes Leitão, em Punhete, actual Constância?, dizemos nós)» em que Camões segundo ela , «critica, com uma ironia sublime, certos galãs, que trazem sempre na manga os versos de Boscán, imitando com uma refinada presunção certos gestos tipificados dos enamorados, para, no final de contas, se deixarem enganar pela primeira alcoviteira».
Na obra lírica de Camões, defende Rita Marnoto, « encontram-se claramente ilustradas as duas facetas da questão da imitatio», assunto que a autora se propõe abordar na recensão entretanto dada à estampa pela Casa-Memória de Camões, através do antigo Centro de Estudos: imitação com intuito de fidelidade em relação à fonte, e imitação no sentido da transformação.
Passando por cima do carácter técnico ali desenvolvido pela autora e na procura de uma síntese objetiva para os leitores, recorremos sem mais à sistematização de algumas ideias-chave do aludido estudo de Rita Marnoto, publicado pela Casa-Memória de Camões mercê do empenho e resiliência da sua fundadora a saudosa jornalista e escritora Manuela de Azevedo:
«No soneto «Ondados fios d’ouro reluzentes», Camões leva a cabo o louvor da figura feminina imitando o modelo bembesco de um modo muito próximo e elegante. Ao mesmo sucede-se o mesmo. O enaltecimento da beleza da Bárbara escrava, todavia, não é conciliável com a subserviência ao cânone do retrato feminino petrarquista – o que leva Camões a inverter o seu sistema de valores, numa atitude que, em certa medida, poderíamos dizer anti-petrarquista».
Transformações detectadas em Camões: «É sintomático que, ao imitar com fidelidade o cânone bembesco, Camões utilize o verso de dez sílabas, mais solene, mas que, para contestar o valor do retrato feminino petrarquista, utilize a medida peninsular, o chamado verso de redondilha, que não se encontra vinculado à tradição italianizante. O poeta dá-se conta da impossibilidade de cantar o outro através do mesmo. E à imitação do modelo, sobrepõe a sua transformação».
Desta lição retiramos que o nosso poeta ocupa uma verdadeira e incontestada posição de charneira entre o Renascimento e o Maneirismo».
Na literatura Portuguesa, a evolução do renascimento para o maneirismo ter-se-á processado de uma forma muito rápida , aceitando de bom grado as conclusões da ilustre conferencista.
Com o Renascimento assistimos ao período da teoria da imitatio em que a mesma é interpretada à luz do princípio da analogia e, por via do período subsequente, entramos no maneirismo, uma época em que, ensina-nos Rita Marnoto, «as certezas oferecidas pela similitude começam a ser ensombradas pela dúvida».
Nalgumas composições das Rimas, temos um poeta, fiel seguidor do exemplo literário que lhe é dado por outros poetas: «É o Camões renascentista em que através de uma trama de paralelismos, cada texto tem por antecedente outro texto, a ser imitado de modo próximo». Por outro lado, os poemas em que segue fielmente outros autores constituem casos pontuais na obra camoniana.
Mais frequentes, conclui a autora, «são as composições em que imita os bons autores, adaptando a letra dos seus textos à sua sensibilidade lírica».
Este é o Camões maneirista. Que prefere a transformação à fiel imitação dos modelos impostos pela normatividade. A autora ilustra muito bem os dois aspectos do lirismo camoniano, não se dispensando de forma alguma a leitura integral do seu artigo.
Sebastião da Gama, veio a Constância discutir sobre o ideal feminino (?), sentar-se à mesa com Camões «que ele morrer, morrer, mesmo, não é com os Poetas» («Diário», dixit). O autor de «Pelo sonho É que Vamos» dizia aos seus alunos que «Ler Camões, é «estar com Camões», logo acrescentando, «é ter Camões à sua mesa».
Não sendo versado academicamente nestas matérias, ao autor da presente crónica somente assiste algum conhecimento obtido através do conceituado Centro Internacional de Estudos Camonianos. A todos esses académicos que me impulsionaram a estudar Camões, só tenho palavras de gratidão.
Feito este pequeno interregno na minha pobre escrita, volto de novo a atenção para a «Bárbora», que Rita Marnoto levou em boa hora para o estudo atrás.
A formusura fora do comum de uma cativa com quem andava d’amores na Índia, chamada «Bárbora» – cativa o poeta, sem qualquer espécie de dúvida, e cativou a autora do estudo que vimos seguindo, Rita Marnoto.
«Bárbora», pois então: «A supremacia da beleza da sua «pretidão» é sublime, quando comparada com a alvura da fisionomia dos povos bárbaros, vindos do norte – que é também a da fisionomia de Laura».
«Endechas a Bárbara Escrava de Camões » (título que não encontro na recensão)
«Rosto singular, olhos sossegados, pretos e cansados, mas não de matar. Uma graça viva, que neles lhe mora, para ser senhora de quem é cativa. Pretos os cabelos, onde o povo vão perde opinião que os louros são belos. Pretidão de Amor, tão doce a figura, que a neve lhe jura que trocara a cor. Leda mansidão que o siso acompanha; bem parece estranha, mas Bárbora não».
Algumas notas/síntese sobre o que li em Rita Marnoto: Aqui Camões, levado pelo fascínio da «pretidão» da sua amada, contesta e inverte o modelo petrarquista, do retrato feminino italianizante. O cânone de Petrarca é chamado à ribalta para ser questionado. O que se vê? Um Camões que não parece atormentado pelas hesitações entre anseios da carne e anseios do espírito. Não há aqui dissídio como no Vate de Arezzo entre a aspiração à beatitude e a consciência do pecado…
O amor inspirado pela Bárbora é vivido sem sobressaltos, como fonte de felicidade. A Petrarca apenas é dado comtemplar Laura à distância…
Bem se vê Sebastião que um novo Banquete dos Trovas faria sentido, em Constância, como na Índia…
José Luz
(ex-presidente do Conselho Fiscal da Casa-Memória de Camões e ex-associado)
PS – não uso o dito AOLP