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O que vou escrever é sobre as associações e grupos recreativos do Entroncamento mais antigo, convicta de que faltarão algumas e alguns. Sem imprensa local nos primeiros tempos, sem memórias desses pioneiros do associativismo e da recreação local, apenas podemos construir uma narrativa desses tempos com fragmentos encontrados aqui e ali. Mas vale a pena tentar, porque as pontas emergentes são interessantes, e por vezes revelam detalhes inesperados.

Quando falamos em sociedades ou grupos recreativos dos tempos antigos, o que se associa à nossa mente são a música, os bailes e as festas. E, na verdade, a música ocupou um espaço muito importante na recreação desses tempos que já vão sendo longínquos. Mas também o teatro, e é pelo teatro que vamos começar.

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A primeira notícia de um grupo recreativo do Entroncamento do século do século XIX é exatamente sobre um grupo teatral, que situaremos aí pelo final dos anos sessenta ou 1870. O Entroncamento dessa época era a estação com o seu edifício de passageiros, algumas instalações necessárias ao funcionamento dos serviços, e poucas casas para funcionários, tudo isto no meio de um imenso olival.

Foi um rapazinho, um jovem telegrafista vindo de Santa Marta de Penaguião, em Trás-os-Montes, que ajudou a formar o primeiro grupo teatral do Entroncamento. Chamava-se o telegrafista Afonso dos Reis Taveira, e ficou na História do teatro português como o grande ator Afonso Taveira. É obvio que após uns anos nos caminhos de ferro, ele abriu asas e voou… para o Teatro.

E quem nos contou tudo isto foi um outro ator, Sousa Bastos, seu contemporâneo, que escreveu o livro “Carteira do Artista: Apontamento para a História do Teatro Português e Brasileiro”, publicado em Lisboa, em 1898.

Depois do grupo do Taveira, formou-se um outro grupo de teatro, uns anos mais tarde. Chamava-se “Teatro Tália”, nome apropriado, pois Tália era a musa da comédia. Tinha havido em Lisboa um famoso teatro com esse nome, pertencente ao conde de Farrobo, famoso pelas grandes festas que lá tinham lugar, os farrobodós do conde de Farrobo. Mas tudo isso terminara em 1862, com um incêndio.

Ou fosse memória do conde, ou influência da musa, foi inaugurado o Teatro Tália em 12 de setembro de 1893, com uma récita por amadores, dirigida por Manuel Gonçalves da Silveira. As peças representadas foram o drama em 3 atos “A Coroa do Artista”, de César de Lacerda, e a comédia em um ato “Os dois estudantes no prego”. A notícia veio no “Jornal Torrejano” de 7 de setembro de 1893.

Manuel Gonçalves da Silveira, o ensaiador, era chefe da estação e também membro da loja maçónica “Fraternidade Universal”, que tinha a sede no Entroncamento.

Divergências internas deram origem a que a sociedade Tália se dividisse e desmoronasse, o que motivou um comentário triste no jornal “O Riachense”, de 1 de março de 1908: “Chega-nos a pungente notícia que a sociedade Tália outrora tão florescente nos tempos inolvidáveis do chorado Silveira, se desdobrou. Dois grupos distintos em combate. Que pena, que dó causa esta derrocada duma agremiação tão próspera.”

Findava assim o grupo Tália, mas não faltariam outras atividades recreativas, porque o popular Parafuso já existia antes de 1911. Quem o disse foi O. P. Brito, mas também um dos presidentes do “Grupo Recreativo 1.º de Outubro de 1911”.

O que O. P. Brito explicou, numa das suas crónicas, foi que o grupo já existia no tempo da monarquia, e tinha a sua sede provisória no lugar aonde foi depois a taberna do Chico

Condesso, e a seguir a casa de pasto Vila Franca. Chamava-se, nesse tempo, “Grupo de Recreio Musical”. O nome diz tudo.

A coletividade tinha adquirido um terreno quase ao lado, onde foi construída a sede, inaugurada em 1 de outubro de 1911. Começou aí a nova vida do popular clube, que foi buscar o seu segundo nome e aquele por que é mais conhecido, Parafuso, aos tempos em que, estando ainda na sede provisória, a que veio a ser taberna, tinha um palco feito de caixotes aparafusados uns aos outros. Quem contou esta história dos parafusos foi o presidente da coletividade em 1933, João Pereira, num texto publicado na revista Terras de Portugal, em abril do ano já mencionado: “Tendo tido a sua primeira sede na casa que é hoje o estabelecimento do sr. Francisco Cotafo Condesso, em que o palco para as récitas era armado em cima de caixotes vazios, ligados uns aos outros por meio de parafusos – daqui lhe veio o apelido “Parafuso” que, ainda hoje, conserva – tem, presentemente, uma esplêndida sala de festas, com lotação para 400 pessoas, aproximadamente; um amplo palco, com 2 grandes camarins; instalação elétrica adequada; vestiário para senhoras, com todas as comodidades; um esplêndido bufete que funciona permanentemente, e onde todos os sócios se podem reunir à noite, com jogos vários de sala”.

João Pereira falava, aqui, da antiga sede do Parafuso, que já não existe.

Mas voltemos às coletividades e grupos daquele tempo, estamos a falar da Primeira República. Além do Parafuso, havia um grupo musical, com rancho, intitulado “Flor da Mocidade”. Talvez tenha durado pouco, mas teve honras de publicação na “Ilustração Portuguesa” n.º 336, de 29 de julho de 1912. Era constituído por 13 executantes, todos com instrumentos de cordas, e onze pares de dançarinos.

Em 19 de março de 1914, foi fundado o “Grupo Recreativo Musical O Ramalhete”.

“O Ramalhete”

Foi um acaso da sorte ter tido acesso a uma velha fotografia deste grupo musical das Vaginhas. Uma antiga aluna, Ana Lopes Domingos, falou-me no seu avô António Lopes Domingos, que fazia parte do grupo musical, e eu logo perguntei se havia fotografia. Sim, já velhinha, colada, partida em três, mas lá está bem visível o grupo, orgulhoso, com a sua bandeira. Um tesouro!

O Ramalhete mudou depois de nome, para “Grupo União Musical Vaginhense”. Tinha a sua sede nas Vaginhas, num dos topos sem saída da Rua Silva Porto, umas casinhas de rés-de-chão que viram muitos bailes do tempo em que eles duravam até ao amanhecer.

No final dos anos dez do século XX existiu outro grupo de teatro e música. Eduardo O. P. Brito descreveu-o, e à sua recreação, desta maneira:

“Os vestígios existentes na nossa memória quanto aos mais antigos agrupamentos musicais existentes no nosso burgo, então circunscrito, além das suas instalações ferroviárias, a pouco mais de uma meia dúzia de casas, distam já dos fins dos anos dez.

Isto, através dum Conjunto Musical existente naquela época, que era constituído pelos Irmãos Pedro (conhecidos geralmente pelos “Sapateiros) e mais dois amigos, sendo os instrumentos utilizados – dessa particularidade recorda-nos perfeitamente – dois bandolins, uma flauta e uma viola.

Denominava-se o grupo de “Alunos de Talma”. Isto devido ao facto dos mesmos indivíduos fazerem também parte dum pequeno agrupamento de teatro, cuja sede se situava, pouco mais ou menos, no local onde, recentemente, se encontrava instalado o café-restaurante “O Caçador”, cujo edifício foi deitado abaixo.

Ora a atuação deste conjunto musical limitava-se, praticamente, a preencher os intervalos das récitas levadas a cabo, as quais eram constituídas, invariavelmente, por grandes dramalhões… de “faca e alguidar”, ao bom gosto das gentes da época, e mais ainda dos “furiosos” amadores de teatro, desses tempos já bem longínquos.”

O.P. Brito devia ser ainda criança, quando conheceu o grupo nesse final dos anos dez, pois nasceu em 1912, mas a atividade teatral dos “Alunos de Talma” ainda deve ter durado uns anos, e talvez ultrapassado o tempo da República. A inspiração para o nome do grupo veio de um famosíssimo ator dos tempos de Napoleão, que marcou a história do Teatro.

Como os Pedros eram republicanos, disse-me O. P. Brito, uma vez, que era voz corrente terem eles bombas debaixo de palco. No regime que se seguiu, a Ditadura, e depois o Estado Novo, vieram a ter problemas. E contou uma pessoa da família, que quando algum deles era preso, como eram quase todos músicos, os que ficavam organizavam logo um bailarico no pátio, para mostrarem à polícia política que não vergavam com aquelas prisões. Mas essas são outras histórias, não de recreação, mas de resistência, com música.

No decurso dos chamados loucos anos vinte, mais precisamente em 1923, formou-se mais um grupo musical, o GIMAC, “Grupo de Instrução Musical Alberto Codina”, que teve muito sucesso.

Nos anos que se seguiram, o jazz motivou os grupos musicais da terra. O GIMAC tinha a sua jazz-band, o antigo Ramalhete, em 1933, já com a nova denominação de “Grupo União Musical Vaginhense”, também formou o seu conjunto jazzístico, e o mesmo aconteceu com a Banda dos Escoteiros, entretanto formada, que em 1936 tem o seu grupo de saxo-jazz. Anos de muita e boa música no Entroncamento.

Em 1921, tinha sido inaugurado o Teatro Cine-Parque, situado no olival que confinava com o pátio da família Pedro, com a entrada principal virada para o pátio. Pisaram aquele chão nomes consagrados que hoje só conhecemos de ouvir falar, as maiores estrelas do firmamento teatral daqueles tempos, Nascimento Fernandes em 1923, com a sua Companhia, a Companhia Maria Matos em 1924, Fernanda Nascimento, do teatro de opereta, em 1926, Ilda Stichini em 1927, Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, no mesmo ano, estes os nomes que foram encontrados em notícias, mas O. P. Brito acrescenta-lhes Berta de Bivar, Auzenda de Oliveira, Lina Demoel, Alves da Cunha, Erico Braga, Luz Veloso… todos eles vieram por aqui deixar um pouco do seu brilho.

O Teatro Cine-Parque tinha a sua orquestra privativa. Os filmes, nesse tempo, eram mudos, e era o acompanhamento musical que lhes dava ritmo e intensidade, que lhes dava vida, acompanhando as diversas cenas. Um dos músicos dessa orquestra do Cine-Parque foi Eduardo de Almeida Trindade, fundador do jornal “Notícias de Entroncamento”, e também fundador do Grupo 84 dos Escoteiros. Tempo de muita devoção cívica.

No final dos anos vinte e início dos anos trinta, formaram-se as coletividades desportivas que toda a gente conhece, o União em 1928, o 11 Unidos em 1929, e o Grupo Desportivo dos Ferroviários em 1931. Para além da recreação desportiva, esses clubes organizavam as suas festas, bailes e espetáculos, tinham grupos cénicos, e por lá passavam os grupos musicais da época, da terra e, por vezes, de fora. Daí para diante, já é outro tempo.

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