Em tempos da Primeira República, terá o povo do Entroncamento participado num linchamento, na estação ferroviária?
Para enquadrar este acontecimento na época e na História, comecemos pela data dele – o dia 16 de maio, ou com mais precisão, a noite de 16 para 17. É uma das datas turbulentas da Primeira República, esta assinalando o atentado a João Chagas e a morte de um senador na estação do Entroncamento, dois dias depois da mais mortífera de todas as revoluções portuguesas do século XX, que pôs fim à ditadura do general Pimenta de Castro.
João Chagas, que tinha sido indigitado para novo primeiro ministro, na sequência da destituição de Pimenta de Castro, neste preciso dia 16 de maio vinha do Porto para Lisboa, acompanhado de sua mulher e de Paulo José Falcão, que ia tomar conta de um ministério, instalados num compartimento do rápido. Segundo noticiara o jornal A Capital, estava previsto ir o aviso Lidador ao porto de Leixões buscá-lo, provavelmente por razões de segurança, mas finalmente decidiu-se que viria no rápido da noite, com chegada prevista a Lisboa à uma da manhã.
Foi o futuro primeiro ministro atacado pelo senador João de Freitas, ou no Entroncamento, onde o senador se encontraria à espera do rápido, ou no percurso entre Paialvo e Entroncamento. Dado que a chegada a Lisboa seria à 1 da manhã, a passagem no Entroncamento deveria ocorrer entre as onze horas e a meia noite.
Os contornos deste atentado são difusos, as versões desencontradas, quanto ao sítio onde entrou João de Freitas, quanto ao número de tiros, quanto à sorte do atacante. A hipótese de ter entrado em Paialvo tem alguma consistência, pois precisaria de percorrer carruagens e observar compartimentos, antes de encontrar o alvo que pretendia abater. Na época, era a estação de Paialvo que servia Tomar, por estrada, não existindo ainda o ramal ferroviário.
Escreveu-se, entre outras motivações do atentado, que João de Freitas procurava Afonso Costa, mas não é crível que os confundisse. João de Freitas, como político, deveria conhecê-los pessoalmente, e saber a quem estava a atingir.
O que se passou nesse compartimento do rápido, é narrado pelo próprio João Chagas, no seu Diário (Diário de João Chagas, vol. 3):
Em 15 de maio, uma revolução destituiu o governo Pimenta de Castro e restabeleceu a Constituição. Neste grande apuro, fui mais uma vez presidente do Conselho.
Em viagem do Porto para Lisboa, aonde ia assumir mais uma vez essas responsabilidades, um senador da República tentou assassinar-me. Recebi três tiros dos cinco que desfechou sobre mim, estando eu sentado ao lado de minha mulher, num compartimento de primeira classe. Em resultado desta agressão, perdi o olho direito. (…) De tudo o que se passou conservo uma lembrança só e essa muito grata – a do amparo que minha mulher me deu quando estive para perder a vida. Ainda a estou vendo, nessa terrível noite de 16 de maio e enquanto eu caía prostrado pelos tiros que me feriram, correndo para o sinistro malfeitor. Sinto ainda na minha mão a pressão da sua, enquanto o comboio rolava pra Lisboa, e o meu sangue corria a jorros.
O que aconteceu a seguir é que se torna mais complexo. Seguindo as diversas notícias dadas na imprensa, e depois o que se foi escrevendo sobre o assunto, fica-se sem saber como morreu o senador, que até era uma figura respeitável, tinha sido professor, deputado, e depois senador, função que exercia à data do atentado.
Num dos textos lidos, se diz que terá sido dominado pelo acompanhante de João Chagas, Paulo Falcão, que o entregou à GNR, atingindo-o esta com um tiro de carabina.
A notícia correu além-fronteiras e chegou a França. João Chagas tinha sido ministro de Portugal em França até há pouco tempo, tinha o seu círculo de amigos e casa em Paris, era conhecido.
Le journal, órgão de imprensa francês, no dia 18 de maio noticiava que o sr. Chagas tinha sido mortalmente ferido, e que o assassino não tivera tempo de fugir, pois os soldados encarregados do serviço de ordem na estação de Entroncamento, tinham descarregado as suas armas sobre ele, matando-o logo. Quanto ao indigitado primeiro ministro, o seu estado era de tal modo grave, que se esperava uma morte próxima, que não aconteceu.
Uma outra notícia, esta do jornal A Vanguarda, dá uma versão completamente diferente dos factos:
O Dr. João de Freitas, após despejar as cargas do revólver, entrega-se à prisão… Mal soaram os tiros, os habitantes da pequena povoação correm ao vilório a armar-se do que apanham à mão: revólveres, bombas, punhais, cacetes. E começam o suplício. Primeiro agridem-no à paulada…
Quando o levaram para a sala da 1.ª classe, agonizava. Já não se podia ter de pé. Estava moribundo.
A massa encefálica e o sangue corriam-lhe pelas faces, dando-lhe um aspeto horroroso e terrível. Passadas quase duas horas de torturas infames e quando seria já cadáver é que partiu o tal tiro, que nem há a certeza de lhe haver acertado. Ainda que lhe acertasse, mataria … um morto, linchado pelo povo em pleno Século XX. (A Vanguarda, 21-05-1915)
Também o historiador Oliveira Marques escreveu que João de Freitas foi morto pelo povo indignado.
Que povo do Entroncamento é este que, entre as onze e a meia noite, está na estação a ver passar os comboios, e estamos a falar de 1915, quando, nessa época, o povo operário se deitava cedo, porque também se levantava de madrugada? E como é que uma aldeia tão pequena, como era naquela altura o Entroncamento, dá origem à multidão linchadora de que falam algumas notícias?
Estarem lá soldados da GNR ou de outra força de segurança, seria normal, tinha havido uma revolução, e era habitual a estação do Entroncamento estar ocupada por tropas sempre que havia turbulência política. A sua situação estratégica e a utilização do comboio como meio privilegiado de deslocação justificavam cuidados de segurança e presença de forças da ordem. Mas uma multidão, ou o povo do vilório, como se escreveu, parece algo deslocado da realidade.
A morte do senador João de Freitas é uma nebulosa. Talvez quem se tenha aproximado mais da verdade tenha sido o historiador Vasco Pulido Valente, ao atribuir a morte aos carbonários do Entroncamento. Carbonários eram indivíduos treinados para ferir e matar, grupos organizados, e haveria um no Entroncamento, uma choça carbonária organizada ainda em tempo da monarquia, que na altura da sua fundação envolvia ferroviários, como não podia deixar de ser, e também militares da Escola Prática de Cavalaria de Torres Novas.
Brito Camacho, num dos seus livros (Por cerros e vales), fala-nos da morte do senador, que lhe ocorria sempre que passava no Entroncamento:
Muita arborização à esquerda, montados e olivais, terras planas e de semeadura à direita, e eis-nos chegados ao Entroncamento, que já hoje é vila, e nem sequer era aldeia, há quarenta e tantos anos, quando eu por ali passava, estudante em férias, viajando na terceira, com as comedorias num taleigo.
Nunca passo por aqui, depois de 1915, que não evoque a memória desse pobre João de Freitas, homem de bem na mais larga aceção da palavra, levado à prática de um crime por alucinação patriótica, que havia muito lhe conturbava o espírito.
João Chagas, que ficou vivo, embora sem um olho, mas continuou a escrever, entendeu que o crime tinha sido cometido por fanatismo político, e terá sido certamente, fruto das rivalidades políticas do republicanismo.
Muitas coisas aconteceram na estação do Entroncamento, envolvendo figuras de relevo nacional, normalmente a passagem desses ilustres pela estação, onde as comitivas e o povo os vinham ver e aplaudir, se era caso disso. Mas um linchamento à noite, a horas mortas, com o pormenor bélico de irem os linchadores a casa armar-se de paus, bombas e punhais, não se percebendo para que era tanto aparato, se o visado era só um, colocam o povo do Entroncamento na História, ainda que os testemunhos sejam contraditórios.
Pode ser que algum perdido arquivo, ou carta, ou confissão feita a amigo, em papéis resgatados do esquecimento, aclarem esta morte obscura, e decidam de vez se o povo linchou ou não linchou.
Manuela Poitout