
Não parece esta a altura propícia para falar de doces e das suas especificidades, a não ser que atravessássemos, por aqui, o mês de qualquer especialidade gastronómica local, à semelhança dos concelhos nossos vizinhos, que têm celebrado o azeite, o sável e outras especialidades de cada qual.
Não é o caso, mas foi a história de uma pequena ocorrência relacionada com os nossos “ferroviários” (refiro-me aos pastéis), que trouxe à tona os primeiros tempos deles e da pessoa que os introduziu, um senhor António Teixeira, fundador da Pastelaria Ribatejo, em 29 de março de 1945.
Aconteceu que um nosso conterrâneo, em visita à zona de Viana do Castelo, entrou numa das pastelarias da cidade, e, ao ver uns bolos idênticos aos nossos “ferroviários”, referiu-se a eles com esse nome, e explicou porquê, ao que a funcionária elucidou que os mesmos se chamavam “sidónios”, e tinham sido inventados em Viana. Se havia igual no Entroncamento, é porque se tinha copiado a receita de Viana.
Investigada a origem dos “sidónios”, constatou-se que os mesmos foram uma criação do então proprietário da pastelaria Brasileira, a mais antiga confeitaria de Viana do Castelo, receita criada em 1918, em homenagem a Sidónio Pais, assassinado na estação do Rossio em 14 de dezembro de 1918. E por tal razão, foi a caixa do pastel moldada com a forma de um caixão. Isto há mais de cem anos.
Para além da admiração pelo político, ele era quase conterrâneo, pois Sidónio Pais nascera em Caminha.
E mais: foi tal o sucesso dos “sidónios”, que o pasteleiro registou a patente, em data que se desconhece, e o seu percurso continua no tempo atual, estando agora a receita muito espalhada na zona do Minho, e já com algumas variantes, mantendo-se a pastelaria Brasileira com a sua receita inicial.
O primeiro sinal da presença dos pastéis designados “ferroviários”, no Entroncamento, foi um anúncio na página publicitária do jornal O Entroncamento, de 30 de novembro de 1950.
À distância de 73 anos, que são os que decorreram desde que esse pastel foi publicitado pela Pastelaria Ribatejo, não é fácil encontrar, se é que houve, um possível elo entre os “sidónios” e os “ferroviários”.
Mas não custa tentar, e assim se chegou à fala com Luís Filipe Mesquita Boavida, filho de José Fernandes Boavida, antigo pasteleiro e proprietário da Pastelaria Ribatejo.
Nunca tinha ouvido falar nos “sidónios”, mas ficou curioso, e foi ler a página deles, na net, admitindo que, efetivamente, o aspeto é semelhante. Indagou ainda de sua mãe, D. Ilda Boavida, e de um antigo empregado, se alguma vez tinham ouvido falar dos “sidónios”, mas não, esse bolo era para eles desconhecido.
Voltemos então, a António Teixeira, o primitivo proprietário da pastelaria, o homem que apresentou essa novidade local na imprensa.
Luís Filipe Boavida, com larga experiência no ramo da pastelaria, admite que um bom pasteleiro tem possibilidade de recriar a receita de um bolo, a partir da sua degustação e do seu aspeto, e nessa linha de pensamento, o “ferroviário” poderia ter-se inspirado no “sidónio”, e digo inspirado, e não copiado, porque a receita do bolo nortenho era patenteada, e, provavelmente, com os seus segredos, como é uso nesta arte da pastelaria.
Podemos, portanto, imaginar, que alguém ofereceu uma caixa de “sidónios” a António Teixeira, ou que o mesmo, curioso, os foi buscar a Viana. E daí? Pode ter sido assim, ou não.
Foi uma criação local que António Teixeira passou ao seu funcionário e sucessor na pastelaria Ribatejo, José Fernandes Boavida, quando lhe cedeu, por trespasse, a pastelaria, em 1 de maio de 1954, e se retirou para o Brasil.
Recriar, nas circunstâncias já citadas, significa que se tem de tentar, modificando e melhorando, até se chegar ao resultado desejado, o que não é o mesmo que seguir uma receita copiada. Criado, ou recriado, o pastel passou a fazer parte das receitas da Pastelaria Ribatejo, mas, por qualquer razão, não estava todos os dias à venda, era feito por encomenda, para festas e eventos especiais. Quase ficou esquecido, até que Luís Filipe Boavida decidiu ceder a receita para o Curso de Ensino Profissional, de Técnicos de Restauração na Escola Profissional Gustave Eiffel, no Entroncamento. E até se deslocou à Escola, para mostrar como se faziam os “ferroviários”.
Uma ideia feliz, que fez com que se não perdesse uma especialidade local, e que se completou com uma caixinha preta, em forma de baú, cópia do antigo baú que acompanhava os ferroviários nas viagens, com os mantimentos para os dias de deslocação, e que, agora, serve para acomodar os pastéis. Uma bela imagem da marca, que já está registada, uma união perfeita entre o doce e um dos objetos mais simbólicos do Entroncamento ferroviário do tempo do vapor.
“Sidónios” e “ferroviários”, apenas uma semelhança, na forma e nos ingredientes.
Pelo seu percurso, o pastel “ferroviário” fez o seu próprio caminho, criou uma identidade, está presente, é nosso.
E já agora, lembrando os tempos de Sidónio Pais, em março de 1918, perante ameaças de greve ferroviária, o governo sidonista concedeu regalias aos trabalhadores. Contudo, apesar dessa cedência, houve cinco greves de ferroviários nesse ano, a última das quais em novembro, integrada na greve geral contra o custo de vida, decretada pela União Operária Nacional (UON).
Durante as greves, as estações foram ocupadas militarmente, e presos os indiciados como agitadores, dirigentes ou implicados em partidos políticos. Na greve de junho, no Entroncamento, havia mais de mil passageiros à espera de comboios. Tempos agitados, de poucas doçuras!
Manuela Poitout