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Manuela Poitout
manuelapoitout@entroncamentoonline.pt

Esta crónica foi publicada numa outra vida do EOL, e por lá andou durante um tempo, esta
e outras, até ao momento em que a página do jornal foi reorganizada, e a crónica deixou de estar online. Ficou confinada aos limbos dos meus ficheiros, e quase esquecida.

Hoje dei com ela, e pensei que, qualquer dia, já não há quem conte histórias do tempo do
autarca José Duarte Coelho, porque deixa de haver contemporâneos. E estas histórias que aqui se contam são verídicas, e improváveis de repetir nos tempos que correm.

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Quando a Ana Geraldes e eu organizámos o livro “Cá pelo Burgo”, com as crónicas do
jornalista O. P. Brito, o primeiro trabalho que fizemos foi lê-las de cabo a rabo.
Começámos nos anos trinta, viemos andando por aí fora e só parámos nas últimas, já
tardias, pois Eduardo O. P. Brito, mesmo nonagenário, ainda escrevia. Aos 95 anos, assinava regularmente a sua crónica no semanário “Notícias do Entroncamento”, e no dia do lançamento do livro, com os mesmos 95, assinou por muitas vezes o seu nome, e respetivas dedicatórias, com a melhor disposição.

Havia muito textos sobre José Duarte, como é evidente, pois o homem tinha sido
presidente da Junta de Freguesia desde 1926 até 1947, e presidente da Câmara Municipal
desde 1947 até 1959.

Uma dessas crónicas parecia algo fantasiosa. Diz ela, traduzindo em linguagem corrente,
que quando José Duarte estava com falta de dinheiro para acabar obras públicas, e queria
acabá-las no tempo previsto, não estava com mais aquelas, e hipotecava uma vinha que tinha na Ribeira de Santarém.

Conhecendo (quem conheceu, é claro) a grande admiração que o jornalista Brito tinha por
José Duarte Coelho, e como ao longo de anos enalteceu o seu trabalho de autarca, poderá
parecer que há nesse texto uma certa tendência para aureolar o presidente com uma faceta benemérita exagerada ou mesmo inexistente.

Quando Mirita Domingues trabalhou na Junta de Freguesia do Entroncamento, o seu avô
António Beato, nessa altura já reformado, propôs-se um dia ajudá-la a organizar a papelada do José Duarte, correspondência vária e outros documentos que estavam guardados, mas não arrumados. Pacientemente organizou tudo em álbuns, sem omitir o mais pequeno papel. E no meio daquilo tudo, lá estavam os documentos das hipotecas da célebre vinha do Monte do Trigo, na Ribeira de Santarém.

Já sem ser pelas crónicas de O. P. Brito, mas pesquisando nos livros de atas da mesma Junta de Freguesia de que estamos falando, deparei-me com uma história parecida. Mas antes de entrar no conteúdo da ata, vou apenas dar uma explicação, para contextualizar o assunto.

Estava-se em 1936, o Entroncamento tinha duas escolas, ambas denominadas Camões, as
duas da CP, uma delas já velha, construída no final do século XIX, e cedida ao Estado para o ensino público, a outra moderna e quase acabada de estrear, para os ferroviários e seus filhos (está agora decadente, e se não lhe acodem, ficamos sem ela).

A escola pública, a romper pelas costuras, ressentia-se também da vizinhança dos
comboios, nesse tempo a vapor, e era de urgência encontrar uma alternativa. Ficava essa
escola, mais ou menos, onde estão hoje um parque automóvel e o antigo dormitório da CP, em terreno da estação ferroviária.

Para implantar uma escola era necessária autorização superior, como foi sempre, mas essas autorizações estavam suspensas devido à elaboração de uma Carta Escolar. Salazar queria construir escolas onde não as havia, mas metódico como sempre foi, ordenou um
levantamento total do país, para saber o que havia e não havia. Foi a partir dessa carta que se construíram as escolas chamadas do Plano dos Centenários, porque tiveram o seu arranque em 1940, ano de comemorações de centenários (1140 e 1640).

José Duarte precisava de uma, ou mesmo de duas escolas, tal era o número de alunos a
necessitar de espaço, e não era para 1940, mas para estarem terminadas em 1938. Havia uma lei muito excecional que previa a construção de escola desde que houvesse um bairro
constituído e não a tivesse.

Bairros tinha o Entroncamento, novinhos em folha ou em construção, de um lado o que
viria a ser o Bairro Salazar, nessa altura ainda a erguer-se, do outro lado da linha o Bairro do Jardim. Escolas é que não havia lá.
Com a ajuda do deputado Amaral Neto, conseguiu-se a almejada autorização, uma escola
para o Bairro Salazar, e outra para o Bairro do Jardim.
E o dinheiro? Onde o vamos buscar?
Agora é que vamos para a ata.

Reuniram o presidente e os vogais, José Duarte Coelho, Frutuoso Mendes e António
Picciochi Garcia e decidiram o seguinte:
“Porque a Junta não tem disponibilidades para dar início aos trabalhos das construções das
escolas e da Sede [da Junta de Freguesia], trabalhos estes com prazo marcado de conclusão, cairíamos fatalmente na perda das comparticipações e deste modo no prejuízo da Terra cujos destinos nos estão entregues.

Como a Junta não está autorizada a construir empréstimos, deliberaram os homens que a
compõem, conjuntamente com o sr. Eduardo Brito, levantar na Casa Bancária Godinho de
Tomar, em seus nomes pessoais, a quantia de quarenta mil escudos ao juro da lei, que
puseram à disposição da Junta para que esta solvesse os seus compromissos e caminhasse.”

Esta ata é de 17 de novembro de 1936 e a sede de que falam é o edifício que mandaram
construir para a Junta, com tal modéstia de dimensões que é hoje a Câmara Municipal.
As escolas foram inauguradas em 1938, uma no Bairro Salazar, outra em frente do Jardim
Pereira Caldas, e mesmo assim, dado o grande número de meninas, nessa época, ficaram as escolas lotadas, porque só tinham duas salas cada uma. Os rapazes continuaram na velha Escola Camões, perto da Estação, realmente já tão vetusta que era conhecida como a Escola Velha.

Nem todas as iniciativas de José Duarte tinham um final feliz, mas ele acabava sempre por
dar a volta e conseguir uma solução.

No início do seu mandato na Junta de Freguesia, o Entroncamento não tinha nada, nem
cemitério (os mortos iam para o cemitério da Atalaia ou da Meia Via, consoante estivessem de um ou outro lado da linha), nem igreja, nem mercado, nem água, nem luz.
O cemitério fazia muita falta, e as outras coisas também. Então José Duarte distribuiu pelos
comerciantes da terra uns papelinhos que diziam, creio, 1 escudo. Era uma espécie de
crowdfunding daqueles tempos, as pessoas davam o dinheiro e contribuíam deste modo para as despesas da sua futura acomodação. Mas eles não gostaram da ideia, não vingou.

O  cemitério fez-se, mas não foi por esse meio.
Não há hipótese de transposição destas situações para agora, os contextos são outros, o
tempo é outro. Mas as histórias, essas, acho que devem ser contadas. Elas fazem parte das
dores de crescimento de um Entroncamento a aumentar vertiginosamente, sem estruturas
que acompanhassem condignamente o crescimento populacional, e testemunham como um
grupo de homens sem subsídios da UE, ultrapassava os obstáculos, para que a Terra que lhes estava entregue, caminhasse. Não há dúvida de que conseguiram. Mal ou bem, a Terra
caminhou.

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