Isto que vou contar passou-se em 1919. Tinha acabado a primeira grande guerra em novembro de 1918, ano terrível, em que além das baixas da guerra, e do número de feridos e inválidos que ela causou, houve também epidemias de gripe broncopneumónica e tifo exantemático.
A preparação das tropas que iam para a Flandres tinha tido lugar em Tancos, e não estamos a falar de centenas, mas de milhares de pessoas, o que exigiu uma logística tremenda, que começou logo pela necessidade de arranjar tendas para toda aquela gente, mantas, leitos, etc.
A alimentação vinha da Manutenção Militar de Lisboa, à exceção da carne, servindo de apoio o matadouro da Barquinha e a Quinta da Cardiga, alugada para esse fim, com um parque de rezes de 300 bois e 1.500 carneiros.
A distribuição alimentar era feita do seguinte modo: os alimentos vinham de comboio de Lisboa, diariamente, havia uma linha direta que os levava até ao Depósito de Materiais do Entroncamento, construído em 1916, no lugar onde estão hoje as instalações militares, e daí seguiam em comboios automóveis para Tancos.
Essas instalações militares do Entroncamento, que foram as primeiras, nasceram por causa da Primeira Guerra.
Acabado o conflito, ficou nos armazéns do Entroncamento todo o material militar trazido de França, e em Tancos, no Quartel de Engenharia, o material que ficou da mobilização para a guerra.
Em julho de 1919, deu-se pela falta de muito material nos armazéns do Entroncamento que serviam de depósito do Material de Guerra. O encarregado dos referidos armazéns, capitão Custódio Vicente, comunicou o facto ao general Correia Barreto, diretor do Arsenal do Exército, e vieram dois agentes da polícia, Custódio das Dores e Hermano da Fonseca, fazer as devidas averiguações. Com tanta felicidade, que passados três dias tinham descoberto os gatunos.
Os agentes foram encontrar, na Golegã, sacas de trincheira, rolos de cordas de tirantes, cabeçadas, arreios, mantas, panos de tenda, cobrejões e outros artigos.
Como ainda faltavam bens dos que tinham sido subtraídos, os mesmos agentes voltaram ao Entroncamento num automóvel fornecido pelo ministério da guerra, e foram por Árgea e Lamarosa à procura de arreios, fazendo buscas domiciliárias. Para seu grande espanto, o que lhes apareceu em todas as casas foi lona branca, grandes panos de lona própria para barracas de campanha. Suspeitando do achado, confiscaram a lona toda e deixaram-na guardada em casa do regedor.
Horas depois, estes agentes, que se mostraram bastante eficientes, encontraram os gatunos e recetadores, e foram todos para a Administração de Torres Novas, para um interrogatório. Apuraram, então, que a referida lona tinha sido retirada dos depósitos de material do aquartelamento de engenharia, em Tancos.
Contaram os detidos que, efetivamente, tinham furtado uma grande porção de barracas de campanha, entrando nos armazéns de Tancos pelo telhado, onde serraram os barrotes, e o material era depositado numa carroça, que depois levavam para Árgea.
E o mais interessante desta história é que a sangria já durava há seis meses, sem que as autoridades militares tivessem descoberto o que se passava. Só souberam quando os agentes entregaram o processo. Ou seja, durante 6 meses, a carroça entrou e saiu descansadamente do Quartel de Engenharia, sem que lhe acontecesse qualquer lance desagradável.
Os culpados foram presos, incluindo as recetadoras, duas mulheres que andavam a vender o roubo pelas povoações. Os agentes ainda conseguiram apreender 6 contos de lonas e material de guerra no valor de 1.500 escudos, mas tiveram de recolher a Lisboa, por necessidades de serviço, sem terem recuperado todo o material. No fim de tudo isto, feitas as devidas verificações, ainda faltavam 400 barracas de campanha. Sendo um material com características próprias e conhecidas, para que quereriam os compradores tantas tendas de campanha? Parece, pelos achados em Árgea e na Lamarosa, que as tendas eram desmanchadas para aproveitamento dos panos de lona.
Subtração de bens de instalações militares ou uso indevido têm havido ao longo dos tempos, com turbulência ou sem ela, por dinheiro ou por política, aproveitando falhas do sistema.
Quando das manobras de preparação para a Primeira Grande Guerra, os soldados aquartelados no acampamento de Santa Margarida andavam pelas tabernas de Tancos, do Entroncamento e das redondezas, a vender latas de atum e de sardinha a 10 centavos, mas isso não era roubo, era uso indevido, porque se privavam de comer esses alimentos para os venderem.
No tempo do reviralho, entre 1931 e 1933, foram retiradas armas dos quartéis, para as mãos dos reviralhistas, mas de Tancos apenas terá saído uma metralhadora Wichers de calibre 7,7, e a pessoa que a pediu a uns sargentos, e que depois a passou a um revolucionário, um médico que ainda exerceu clínica no Entroncamento, mas por espaço de tempo muito curto, porque foi preso, respondeu em tribunal militar especial e foi deportado para Angra do Heroísmo durante dois anos.
Se o castigo do caso contemporâneo fosse proporcional a este, contando-se o número de armas desviadas, dava deportação para a vida toda.
Nota: Grande parte das informações contidas neste texto foram retiradas de um órgão de imprensa de curta duração, que se chama mesmo “A Imprensa”. Durou de 21 de junho a 3 de julho de 1919, enquanto estiveram autossuspensos os jornais Capital, Diário de Notícias, Época, Jornal do Comércio, Jornal da Tarde, Luta, Manhã, Mundo, Opinião, Portugal, República, O Século, Vanguarda e Vitória, por divergências com a Federação do Livro e do Jornal, na qual se incluía o pessoal das gráficas, numa época intensa de greves.