Não sei se alguém se lembra da história contada por O. P. Brito, da sopa a escaldar. Era uma história antiga, de antes de 1876, contada por Alberto Pimentel num seu Guia do Viajante, e que O. P. Brito recuperou numa das suas crónicas.
Nesses idos de oitocentos, havia mudança de comboio no Entroncamento, e um pequeno intervalo para jantar, reservado às classes endinheiradas.
Segundo Alberto Pimentel, no restaurante da estação do Entroncamento a sopa era propositadamente servida bem quente, de modo que o cliente, que já tinha pago o jantar, não o conseguia comer, devido ao pouco tempo de que dispunha.
Pimentel zurziu com vigor o restaurante, e essa publicidade foi má para a imagem da estação que era então das mais conhecidas.
Escreveu ele no já citado Guia do Viajante: “Todavia, como tu, se vieres do Porto no comboio misto descendente, aqui deves chegar às 4 e 20 minutos da tarde, hora de jantar, deixa-me prevenir-te de que durante esses trinta minutos de demora é servido no restaurant o mais confuso, o mais pandemónico jantar de que há notícia. Se quiseres atraiçoar desapiedadamente o estômago, (…) senta-te à mesa, onde o prato da sopa fumega pavorosamente, escalda com o primeiro sorvo a goela e o esófago, incomoda-te, atordoa-te no pandemónio da sala, onde os criados se enlabirintam intencionalmente para servirem mal, e levanta-te desesperado, verdadeiramente desesperado, – sem haveres comido e tendo pago 500 réis.
Não há memória nos fastos pantagruélicos de tão leve e tão tormentoso jantar, – por tanto dinheiro. Três ou quatro pratos perpassam pela gente com uma rapidez vertiginosa, de modo que mal lhes podemos tocar, e para sempre desaparecem na onda revolta. Depois… fica-se esperando pelo jantar, e, quando a gente cuida ver acalmar a tormenta, dá-se o sinal de partida, e começam os passageiros a correr tumultuosamente para o vagão, – protestando! (…) Os jornais têm falado algumas vezes destas cenas tumultuárias do restaurant do Entroncamento, e, ainda outro dia, uma correspondência de Coimbra para o Diário de Notícias referia que os passageiros, entre os quais figurava o ilustre professor, sr. Augusto Soromenho, haviam protestado que não se levantariam da mesa sem ter jantado. Parece que dessa vez o comboio se resolveu a esperar pelo jantar.”
Seria esta uma história para esquecer se, depois disso, os concessionários do bufete se tivessem aprimorado no serviço, mas na década de vinte, do século seguinte, apareceram novas queixas. Num estudo, encontrei um excerto da autoria do célebre médico, investigador e higienista Ricardo Jorge, no qual ele se refere ao restaurante da nossa estação em termos ainda mais deprimentes do que os anteriores.
Fiquei curiosa e decidi comprar o livro onde essa crítica está escrita. Encontrei-o num alfarrabista, e não dou por perdido o dinheiro gasto, antes pelo contrário. Ricardo Jorge era culto e viajado, e escrevia muito bem. Este livro de que falo, Passadas de erradio, é uma compilação de crónicas de viagem. Lê-lo é um prazer e uma constante aprendizagem.
Desviar-me-ei agora um pouco da matéria que estava a abordar, para mostrar quão enriquecedoras estas crónicas podem ser, consoante o gosto dos leitores. Na primeira delas, foi o médico a Florença, e o que nos descreve com mais realce não são os museus e os palácios, que perpassam pelo texto, mas a vinda de Mussolini à cidade que o autor chama florida de nome e de emblema. Omito a interessante análise do Dr. Ricardo Jorge sobre o Duce, e a apoteótica receção que lhe fizeram, que valem bem a pena ler, para me deter num pequeno episódio.
No final da viagem de Paris para Turim, que foi feita de comboio, Ricardo Jorge deu de caras, na estação de Turim, com um grupo de camisas negras, jovens fascistas que saudaram um camarada vindo no comboio, de braço estendido e gritando – eja, eja! alalá, alalá!
Ricardo Jorge fez, sobre isto, o seguinte comentário: “… ritualizou-se esta saudação que dizem ser à romana. A crer nos arqueólogos, não era assim que trocavam a salvação os togados do forum; a continência dos fascistas não seria afinal senão o cumprimento usado entre os gladiadores do circo”.
Em janeiro de 1924, o ilustre médico voltou a viajar, desta vez para Madrid, viagem que motivou novo texto do qual faz parte a crítica a que me refiro, e que transcrevo: “Quem demandar terras do Cid, não direi que faça testamento, mas tem de preparar-se para o que der e vier. Alforge de comestíveis e bebestíveis, como nos tempos da montada e da liteira, é de rigor – porque o restaurante do Entroncamento usurpa o título, tornou-se locanda muitos furos abaixo da mais ínfima tasca da Mouraria, salvo no preço. As avaras vitualhas são intragáveis, a água turva e salobra; para desafogo da indignação, causada pela sujice da mesa e da baiuca, não há senão que reparar nos camareiros, porque ninguém sofreará uma gargalhada, vendo-os a servir a chanfana… de smoking”.
O dr. Ricardo Jorge era uma pessoa influente e conhecida, é muito plausível que tenha feito chegar a sua opinião à Administração da CP, ainda antes deste apontamento no seu texto sobre a viagem a Espanha, porque bastas vezes há-de ele ter passado no Entroncamento, dada a frequência com que viajava, umas vezes por recreio, outras para representar Portugal em congressos médicos.
Nós só o conhecemos do Instituto Ricardo Jorge, a que ele deu o nome, mas a sua influência era tal nos anos vinte, que quando chegou a Coca-cola a Portugal, ele desaconselhou o seu consumo e terá sido proibida devido à sua opinião. A primeira frase publicitária para a bebida tinha sido feita por Fernando Pessoa – Primeiro estranha-se, depois entranha-se.
A frase é conhecida, o autor não sei se será. A presença de coca no nome e possivelmente no produto, a bebida que se entranhava, terão motivado a proibição. Até 1977, quando teve enfim permissão de entrar no mercado, Coca-Cola, a tal…
Da influência do Dr. Ricardo Jorge na melhoria da qualidade do restaurante da estação do Entroncamento, nada se sabe.
Até 1929, não terá havido grandes mudanças, porque ainda apareceu uma crónica, publicada no Diário de Notícias americano, uma publicação em português para emigrantes em terras do tio Sam, na qual se menciona o preço exorbitante do chá do bufete do Entroncamento: “Que chazinho, amigo leitor! Um expoente infinito aplicado ao chá de Tolentino, aquela sete vezes fervida e refervida mistela do vate lisboeta. E dá para cá cinquenta centavos por cada chávena!
A propósito não sei quem contou a história do penúltimo arrematante do bufete que, durante a guerra, fez um fortunão a vender infuso de folhas a peso de oiro! Se já o outro dizia – A terra é boa, a gente não é má. A água é deles e nós vendemo-la.
Por sim, por não, se estas linhas prenderem a atenção de algum dos diretores da CP, que a sua ação se exerça para que daquela coisa que se chama pomposamente o bufete do Entroncamento, como a Fénix mitológica, um restaurantezinho modesto, mas decente.”
Creio que, antes de “um restaurantezinho”, falta o verbo nasça ou renasça, para que a frase fique completa, mas mesmo sem ele, percebemos perfeitamente o pensamento do autor.
Até esta data, ou seja, 1929, parece que o único escritor que disse maravilhas do restaurante da estação, foi Hans Christian Andersen, em 1866.
Manuela Poitout