Quando da construção do caminho de ferro nas terras que hoje pertencem ao concelho do Entroncamento, e estamos a falar de 1859, 1860, 1861, foi necessário expropriar parcelas de terreno que pertenciam a uns e a outros, não só para o traçado da linha férrea, mas também para a construção da estação, de oficinas e do depósito de máquinas, uma vez que se tratava de uma estação de enlace de duas linhas férreas importantes.
Entre os expropriados, estavam João Rebelo Farinha, grande proprietário com residência na Barquinha, na Quinta da Lameira, e sua mãe, D. Maria Silvestre, membros de uma família abastada, com muitos teres e haveres.
O que constituía o vasto património de João Rebelo Farinha, no Entroncamento, só foi possível sabê-lo quando foi necessário construir as primeiras instalações militares, o primeiro mercado, e expandir os terrenos da Companhia dos Caminhos de Ferro, para construção de habitações e de oficinas.
Nessa altura, já João Rebelo Farinha tinha falecido, em 11 de janeiro de 1904. O extinto, que fora administrador da Barquinha, durante anos, desde 1865, deixara duas filhas, Maria Efigénia Rebelo e Benedita Rebelo, que eram as suas únicas herdeiras, herdeiras do património que seu pai adquirira, e também daquele que ele e seus irmãos, Maria Efigénia Rebello de Sousa e António Rebello Farinha de Sousa, tinham herdado, nomeadamente a Quinta da Lameira.
João Rebelo Farinha deve ter pensado, perante um património familiar alargado por heranças de família, na possibilidade de o mesmo um dia pertencer a netos e bisnetos, já que tinha duas filhas, e seria lógico e normal que se casassem e dessem continuidade à família Rebelo. Mas tal não aconteceu. Numa família onde já tinha havido dois irmãos seus celibatários, também as filhas permaneceram solteiras.
Viviam em Lisboa, dos rendimentos, obviamente. E não tendo família próxima, a venda de bens diminuía os cuidados e custos da sua administração, e concorria para a manutenção das proprietárias. E foi assim que, na Primeira República, uma grande parte do património da família Rebelo, no Entroncamento, foi vendida ao Estado e a particulares.
Em 1915, é a Sociedade Cooperativa dos Ferroviários e Aderentes, nessa altura uma cooperativa de crédito e consumo, que adquire terreno às senhoras Rebelo, para se construir um mercado diário, onde está hoje o Centro Cultural.
Em dezembro do mesmo ano, é o Ministério da Guerra que entra em negociações com estas proprietárias, interessado num vasto terreno de olival e pinhal, que se estendia até ao Hipódromo da Escola Prática de Cavalaria de Torres Novas, para nele se construírem os depósitos de materiais que iriam dar apoio logístico ao acampamento gigante de Tancos, onde milhares de homens se preparavam para entrar na 1.ª Grande Guerra.
Na altura, o tenente-coronel Gonzaga, encarregado da compra do terreno, recebeu a seguinte carta, assinada por Benedita Rebelo:
“Lisboa 8 de Janeiro de 1916
Ex.mo Sr. Guilherme de Campos Gonzaga D.mo T.e C.el d’Art.ª
Repartição Técnica – Arsenal do Exército – Lisboa
Em resposta à carta de V. Ex.ª com a data de 30 de dezembro de 1915, venho dizer-lhe que os terrenos que eu e minha irmã possuímos no Entroncamento, à esquerda e à direita da estrada que, partindo da passagem de nível vai entroncar na da Golegã, faço o preço de vinte centavos por cada metro quadrado de terreno e quatro escudos por cada oliveira, supondo conter, o referido terreno, quatrocentas e noventa oliveiras. Esta propriedade é foreira do ex.mo Sr. José Relvas.
De V. Ex.ª At.ª e V.ra
Benedita da Silva Rebelo”
O negócio fez-se, e logo começaram as construções militares. Do outro lado da estrada, a Companhia dos Caminhos de Ferro adquiria, também, terrenos para a Vila Verde, todos das irmãs Rebelo, tal como diz a carta: “… os terrenos que eu e minha irmã possuímos no Entroncamento, à esquerda e à direita da estrada que vai entroncar na da Golegã.”
E comentava o jornalista Oldemiro César, do jornal O Século, aquele belo negócio dos terrenos para as construções militares, que depressa se ergueram no lugar do antigo pinhal:
“Catorze contos – uma miséria! – custou ao Estado todo este extenso pinhal meio derrubado que não tardará a povoar-se, como uma pequenina cidade de província, de mil e um pavilhões exclusivamente destinados ao uso do nosso exército. Foi quanto pediram por ele as suas antigas proprietárias, boas velhotas que, involuntariamente talvez, facilitaram ao país um ótimo e económico negócio.
Ao capitão Beltrão, de engenharia, diretor das obras dos depósitos territoriais do Entroncamento e chefe dos serviços dos comboios automóveis, se deve este milagre de zelo e dedicação, que são as instalações militares do Entroncamento, ocupando um antigo pinhal extensíssimo, outrora pertença particular e hoje na posse do Estado para os fins especiais a que o destinaram.
Este oficial distinto, que já se notabilizara como sportman vencendo o rail hípico organizado em 1907 pela Ilustração Portuguesa, raid que tanto contribuiu para o desenvolvimento entre nós do gosto pelo hipismo, iniciou as obras em 16 de janeiro deste ano de 1916, e, principiando por derrubar grande parte do pinheiral, não se esqueceu de aproveitar a preciosa madeira para a construção dos barracões, também de ferro e tijolo, sendo verdadeiramente incansável na multiplicidade de esforços que ainda hoje, cinco meses volvidos, tem de despender para levar a cabo a sua obra monumental. Muitos destes pavilhões estão ainda por acabar, é certo, mas já podem muito sofrivelmente prestar os serviços para que se destinam, como muito bem o demonstram as três casernas, a secretaria, o armazém de víveres, as garagens, as cavalariças e cozinhas, uma oficina de carpinteiros e a casa onde se albergam os oficiais e que mais tarde exclusivamente se destinará a quartos de sargentos.
Numa das garagens, de solo já quase inteiramente cimentado, abriga-se uma extensa fileira de motocicletas side-car, cuja especial missão consiste em acompanhar os comboios automóveis que todas as manhãs levam daqui a Tancos o preciso para a vida dos grandes contingentes de tropas que ali acampam.” Oldemiro César, correspondente de O Século, A cooperação de Portugal na Guerra Europeia – O milagre de Tancos)
A fotografia em anexo, do arquivo do Centro Português de Fotografia (PT-CPF-APR-001-001-002472_m0001), é da autoria de Homero Paz dos Reis, que nela figura, e testemunha as primeiras construções militares no Entroncamento. Nela está muito presente o antigo pinhal da família Rebelo, algumas árvores ainda de pé, outras já transformadas em instalações provisórias do Depósito de Materiais do Entroncamento.
Homero Paz dos Reis, filho do conhecido fotógrafo amador portuense e introdutor do cinema em Portugal, Aurélio da Paz dos Reis, era capitão de engenharia em Tancos, e deve ter-se deslocado ao Entroncamento, acompanhando o capitão Beltrão nos seus trabalhos de construção das casernas e outras instalações.
Em novembro de 1926, a Companhia dos Caminhos de Ferro adquiriu mais terrenos, desta vez só a Maria Efigénia Rebelo. Destinavam-se a instalações oficinais e ao futuro Bairro Camões, já projetado. A compra é publicada no Diário do Governo:
“O Diário do Governo de 4 deste mês publicou uma portaria declarando de utilidade pública e urgente a expropriação de duas parcelas de terreno situadas junto à estação do Entroncamento pertencentes a D. Maria Efigénia Rebelo, uma com 21.066m2,05 situada à direita da linha do Leste entre os quilómetros 105.587 e 105.686,5 e outra com 34.936m2 separada da primeira pela estrada para Torres Novas, situada entre os quilómetros 105.693 e 106.040 da linha do leste, com destino à construção dum bairro operário para o seu pessoal, e para várias instalações necessárias em vista do aumento de tráfego que dia a dia se acentua. (Gazeta dos Caminhos de Ferro n.º 933, novembro 1926)
De tão vasto legado, do qual se apresenta aqui só uma parte, a que foi utilizada para construções de utilidade pública, no Entroncamento, o que ficou, que destino teve?
O resto desta pequena história vamos buscá-lo a um texto do Dr. Fernando Freire, publicado no jornal mediotejo.net, de 31 de março de 2021, sobre a Quinta da Lameira:
“Como tinha referido noutro artigo publicado no mediotejo.net, pelas fichas do P.D.M. de Vila Nova da Barquinha identifiquei a Quinta da Lameira como quinta agrícola com solar e capela do séc. XVIII, desconhecendo qual a data precisa da sua construção.
Por outro lado, sabia de uma herança atribuída ao Dr. Ribeiro da Silva, médico que prestou assistência, durante a sua vida, às donas da quinta, de apelido Rebelo. Estas não tendo herdeiros legitimários, cônjuges, descendentes e ascendentes, deixaram todos os seus bens, em testamento, ao clínico.”