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Manuela Poitout manuelapoitout@entroncamentoonline.pt

Já vi escrito em comentário, e por isso penso que será convicção de algumas pessoas, que a COMPAL saiu do Entroncamento por culpa da Câmara Municipal de então, que não teria propiciado as condições necessárias à sua permanência.
A nenhuma Câmara interessaria dificultar a vida a uma empresa com o nível e as dimensões da COMPAL, mas a ideia parece ser antiga, e só andando para trás, e lendo documentos da época e da própria empresa, se verá até que ponto uma tal afirmação terá uma base de verdade.
A COMPAL nasceu no Entroncamento em 1952, e afirmou-se desde logo como uma empresa relevante na indústria nacional. Saiu da então vila ferroviária em 1972, vinte anos de permanência que aqui se evocarão nos seus aspetos essenciais, não só para relembrar uma parte da História Industrial do Entroncamento, mas também para aclarar algumas “nebulosidades” que persistem. Durante esse tempo, a empresa contactou com três presidentes da Câmara, José Duarte Coelho até 1959, Manuel Pedroso Gonçalves, de 1959 a 1961, e Eugénio Poitout no tempo restante.
Para enquadrar devidamente o nascimento da COMPAL, é mister recuar até fevereiro de 1948, quando foi inaugurada, no Entroncamento, uma fábrica conhecida por Frutália, cujo produto era a Grapina, sumo natural de uva, e a empresa Sociedade Produtora de Fruta Líquida. Estava ligada à família Agostinho, e funcionava no espaço industrial da firma José Marques Agostinho, Filhos & C.ª. Tecnologia estrangeira da mais moderna, engenheiro suíço a dirigir a maquinaria, larga campanha publicitária, nada faltou, numa época de pós-guerra bem difícil. A fábrica foi pioneira. O mentor era António Marques Agostinho, que veio a faleceu 2 anos depois, em 1949.


A empresa continuou com os restantes sócios, mas ressentiu-se seriamente da falta de António Agostinho. Em 1952, surgiu a grande oportunidade – a fundação da COMPAL, utilizando o espaço fabril da antiga Frutália. Sobre a fundação e os primeiros anos de funcionamento da nova empresa, transcrevo um texto publicado online, em 17 de março de 2010, na página da CUF.
Surge em 1952 a COMPAL – Companhia Produtora de Conservas Alimentares detendo um capital inicial de sete mil contos, dividido em ações unitárias de mil escudos, fruto de uma fusão de duas fábricas: a Sociedade de Fruta Líquida e a ENCA – Empresa Nacional de Conservas Alimentares. É considerada desde logo uma empresa inovadora, apostando nos métodos científicos, o que muito nos diz do tipo de acionistas (nomes sonantes da agronomia, técnicos superiores e até professores do ISA – Instituto Superior de Agronomia, complementado por proprietários rurais). O local escolhido para a implantação da fábrica é o Entroncamento, área forte de produção hortofrutícola. A estratégia comercial da COMPAL nesta primeira fase é especialmente dedicada ao concentrado de tomate, que estava em alta nos mercados internacionais. Por isso contacta com técnicos estrangeiros (alemães e italianos) numa ótica de transferência e aquisição de moderna tecnologia. Apesar dos normais problemas de funcionamento da nova unidade fabril, a COMPAL começa a ganhar nome, cresce, tanto no mercado interno como no externo para onde exporta parte da sua produção (Inglaterra e Noruega), e em 1957 dando o mercado grandes sinais de vitalidade, aumenta a sua capacidade fabril.
Pelo exposto, é óbvio que a atividade da fábrica era intensa e, consequentemente, o movimento de entrada da matéria-prima (na época, o tomate) e de saída do produto industrializado processava-se ao mesmo ritmo. Para facilitar o acesso das viaturas à fábrica, foi desativado da servidão pública um velho caminho que servia as Vaginhas e Ponte da Pedra, caminho que era usado há muito tempo, diziam os antigos que seria centenário.
A supressão do caminho surpreendeu os utentes dele, habituados que estavam, há tantos anos, a passar por ali, e um vaginhense manifestou-se em carta para o jornal O Entroncamento:
Como vaginhense que me prezo, venho junto de V. pelo seguinte motivo: Existe, há perto de uma centena de anos, uma rua que liga o Largo do Freixo ao Bairro da Ponte da Pedra; mas, como a fábrica “Compal” abrisse para a citada rua uma serventia para seu governo e aterrasse (não sei com que direito) o restante troço que vai além da entrada da referida fábrica para o Bairro da Ponte da Pedra, foi o bom povo das Vaginhas obrigado a passar mais ao lado, pois as obras da fábrica apanharam a estrada quase toda. Não era isso, porém, o que nos faria mal.
O pior foi terem tapado a passagem com um taipal de madeira tosca, no princípio do seu alinhamento. Houve algumas pessoas que protestaram, mas infelizmente sem êxito, pois o citado taipal continua na mesma a privar-nos do nosso caminho, que foi e será sempre nosso. Não se priva um povo de uma regalia que de direito lhe pertence há quase uma centena de anos.
Como a voz do Povo é a voz de Deus, pedimos, por intermédio do nosso jornal, que nos seja feita justiça, pois assiste-nos esse direito.
Ao que nos consta, parece que já houve quem dissesse que aquilo era um simples carreiro, mas não, não era, e não é; é, sim, uma estrada, tanto mais que nela foi assente a rede de águas que abastece o Bairro da Ponte da Pedra.
Como prova de que ali sempre existiu a rua em questão, há na Ponte da Pedra duas pessoas de avançada idade que o podem testemunhar, e nas Vaginhas também existem algumas. (O Entroncamento n.º 183, 30-08-1954)
Em contracorrente com as queixas, José Duarte Coelho foi implacável. Em 25 de novembro desse ano de 1954, decidiu o elenco camarário desafetar do uso público o tal caminho que ligava a Rua António Marques Agostinho aos arrabaldes da Ponte da Pedra, convidando todas as pessoas interessadas a apresentar as suas reclamações, quando justas, na referida Câmara, para o que foram afixados os respetivos editais.
Não se sabe se alguém foi à Câmara reclamar, mesmo estando os afetados convictos da justiça das suas razões. Os tempos não eram propícios a reclamações dos cidadãos, mesmo as justas.
Uma parte do tal caminho, julgo, a que foi desafetada, passaria no espaço situado entre os chamados portões da Compal, espaço hoje privado. Vaginhenses e passantes de ocasião passaram a ter de contornar as instalações das fábricas Agostinhos, pela estrada Nacional 3, para chegarem à Ponte da Pedra. Retirava-se. assim, ao povo, um privilégio antigo, uma passagem pública, para favorecer a nova empresa.
Apesar do crescimento progressivo, a COMPAL teve problemas, que o cronista designou de fragilidades financeiras, e aqui retomamos o texto com o historial da empresa, dando-lhe continuidade:
Mas desde cedo o projeto COMPAL revelou fragilidades financeiras em termos de capitais, fundamentais para uma indústria deste tipo, que necessita de constante investimento na modernização das suas unidades, dinheiro esse que a empresa só consegue através de empréstimos bancários. O ano de 1958 e seguintes irão marcar um ponto de viragem, com um abrandamento das suas vendas, acumulação de stocks e problemas financeiros, em que os acionistas que poderiam ajudar a empresa, acabam por se desligar dela.
A Administração procura soluções viáveis, passando uma delas por encontrar um novo acionista de referência. Sabendo que a CUF se encontrava interessada em se expandir para o sector alimentar, começaram as negociações para a aquisição maioritária das ações da empresa em 1963, após uma visita do Dr. Jorge de Mello e de outros técnicos da CUF às instalações da empresa.
Iniciava-se assim um novo ciclo da COMPAL, agora inserida no grande e diversificado grupo empresarial da CUF que a vai salvar da ruína e transformá-la numa marca de referência no mercado nacional. A empresa passava a deter um maior acesso ao crédito (através do Banco Totta), chegam novos gestores e uma nova cultura empresarial. Logo de imediato é discutido um plano de expansão imediata pelo qual passava a construção duma nova fábrica, que viria a [ser] construída em Almeirim sob a supervisão de outra empresa do grupo: a Profabril. Esta fábrica arranca a todo o vapor no ano de 1964, com os mais modernos equipamentos que vieram de Itália (…)
Em 1967 a empresa começou a comercializar doces de fruta, bem como sopas enlatadas (segmento onde estava na vanguarda), latas de favas e ervilhas, puré de grão, puré de feijão, etc. A distribuição da COMPAL é integrada na rede CUF/SONADEL, o que significa chegar a zonas mais afastadas e menos rentáveis devido à enorme e eficaz cobertura que tal rede possuía. Centra-se a produção na Fábrica de Almeirim.
É evidente que, a partir de 1964, com a construção da fábrica em Almeirim, muito mais moderna, com a produção centrada lá, e com novos produtos, a fábrica do Entroncamento passa a segundo plano.
A notícia de uma possível mudança terá começado a circular na opinião pública no início de 1970, época que o cronista da COMPAL caracteriza como de declínio do concentrado de tomate e necessidade de diversificação noutras áreas.
O boato sobre as culpas da Câmara terá circulado na mesma altura, o que vai motivar uma tomada de posição da própria Câmara, e depois da empresa, traduzida em documento enviado à edilidade do Entroncamento, e comentado em ata de 9 de abril de 1970, cujo conteúdo se reproduz:
Em seguida o Senhor Presidente apresentou o ofício n.º mil oitocentos e vinte e um, de vinte seis de março último, remetido pela Companhia Produtora de Conservas Alimentares – Compal – e que é a resposta ao ofício n.º quinhentos e três, de doze do mesmo mês, desta Câmara Municipal. Lido que foi este ofício, o Senhor Presidente prestou os seguintes esclarecimentos: – Tem sido voz corrente no Entroncamento, que a Compal ia mudar as suas instalações do nosso concelho para o de Almeirim, por virtude de exigências feitas pela nossa Câmara e que esta Empresa não pode cumprir. Como estas afirmações, feitas a título gratuito, sem qualquer veracidade e só com o intuito de comprometer a nossa administração, […] do que se passava, dado que a Câmara Municipal do Entroncamento sempre se tem interessado pela manutenção e bem-estar da Compal nesta vila. O ofício ora recebido é bem elucidativo neste sentido. Assim supondo acautelada a posição do nosso Município no caso em questão, proponho que se transcreva na ata desta reunião, o ofício que acabo de ler. Segue-se o teor do ofício: – “À Câmara Municipal do Entroncamento – Excelentíssimos Senhores, Recebemos o prezado ofício de Vossas Excelências número quinhentos e três de doze do corrente, a cujo conteúdo dedicámos a nossa maior atenção e que muito agradecemos. É para nós lamentável verificar que a um assunto que tem como razão de ser motivos de ordem interna da empresa – o estudo da concentração das nossas atividades industriais, tendo como eventual consequência a transferência dos nossos serviços atualmente em exploração no Entroncamento – seja emprestado um significado diferente e totalmente errado. Mais nos desgosta saber que o boato levantado em torno deste problema aflora possíveis atitudes da Excelentíssima Câmara para com a Compal, quando esta empresa se congratula por ter sempre recebido a melhor colaboração de Vossas Excelências e dos seus serviços. Nessa base de compreensão têm decorrido as entrevistas havidas entre o signatário e Vossas Excelências, sendo para nós motivo do maior apreço a forma como nos foram postos todos os assuntos relativos à nossa fábrica no Entroncamento e a maneira como foram entendidos os problemas de ordem interna que nos sentimos no dever de expor abertamente para explicação do nosso procedimento. Por tudo isso e para os fins que Vossa Excelência tiver por convenientes desejamos deixar expresso o nosso repúdio por quaisquer boatos em que se insinuem estarem eventuais decisões administrativas da Compal relacionadas com qualquer atitude menos própria ou lesiva dos seus interesses por parte dessa Excelentíssima Câmara. Mais desejamos reafirmar o grato prazer que temos tido na franca compreensão da Câmara para com os nossos problemas, nomeadamente através do seu Excelentíssimo Presidente. É com o nosso agradecimento pelas atenções recebidas que nos subescrevemos apresentando a Vossas Excelências os nossos melhores cumprimentos. Muito atentamente – Compal – o Administrador J. M. Sousa Catita. (Livro de atas camarárias n.º 22, fls.82, 82 v. e 83)
Se o jornal O Entroncamento ainda existisse, a Câmara poderia ter dado alguma publicidade à carta da COMPAL, através do cronista-mor Eduardo O. P. Brito. Mas o nosso periódico local tinha sido suspenso pela censura em novembro do ano anterior. Fazê-lo através dos numerosos jornais de que O. P. Brito era correspondente, seria outro meio de tentar combater o boato. Mas mesmo que esses meios tenham sido utilizados, à distância de 50 anos não podemos avaliar a eficácia da mensagem nos boateiros.
O que podemos avaliar é a eficácia do boato, porque ele persistiu ao longo de meio século.
Quanto à COMPAL, tal como se desenhava já nos seus projetos, em 1970, em 1972 mudou para Almeirim. Eis, o que sobre o assunto, se lê no Relatório de Contas da empresa, relativo a 1972:
Compal – Relatório e contas do exercício de 1972
Srs. Acionistas – Cumprindo os estatutos, vimos submeter a VV. Ex.as o relatório, balanço e desenvolvimento da conta “Ganhos e perdas” correspondentes ao exercício de 1972.
O volume total das vendas atingiu 166.425 contos. Verifica-se que não só se aumentaram as vendas totais em 14,5% sobre o exercício anterior, como se conseguiu minorar a nossa dependência do concentrado de tomate.
No que se refere propriamente ao concentrado de tomate, registou-se no final da campanha forte procura, provocada pelo mau ano agrícola nalguns países produtores, que esperamos venha a ter reflexos favoráveis no próximo exercício.
Lamentavelmente, e pelas razões de todos conhecidas, vimo-nos obrigados a cessar praticamente as nossas vendas para Angola e Moçambique, que se vinham desenvolvendo a ritmo muito satisfatório.
A conclusão das operações de centralização dos fabricos e armazenagens em Almeirim e o consequente encerramento das instalações no Entroncamento realizaram-se no exercício em apreciação. Este facto que, conduzindo a racionalização dos fabricos, irá certamente permitir melhorar custos, provocou uma regularização de parcelas patrimoniais, o que se evidencia no balanço.
(…) Os resultados negativos do exercício, no montante de 65,886$70, são a expressão da atividade no ano de 1972. Não se pode, pois, deixar de considerar que nos estamos situando no ponto de viragem da empresa.
(Diário do Governo n.º 161 III Série, 11-07-1973, p. 6068)

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