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Manuela Poitout manuelapoitout@entroncamentoonline.pt

Disseram-me há dias que tinha falecido a D. Bia, conhecida no Entroncamento como a filha do Manuel Francisco da Casa das Bicicletas.

O pai tinha um estabelecimento na Rua 5 de Outubro, onde vendia bicicletas e outros artigos. Sempre ouvi dizer que Manuel Francisco era republicano.

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Quando ele morreu, a filha continuou com o estabelecimento. Tinha um temperamento instável, por vezes um pouco agressivo, devido a distúrbios de saúde. Eu ia lá às vezes, comprar coisas de que necessitava.

Num dia em que a encontrei quase afável, comecei uma conversa, e como ela foi respondendo, perguntei-lhe se o pai era republicano, como se dizia.

– Era, sim, e por causa disso, nunca fui à escola, porque ele dizia que havia um crucifixo na sala de aula, e que filha dele nunca teria aulas em salas com crucifixos. Fui privada do ensino e do convívio com crianças da minha idade, por causa das ideias do meu pai. Ainda hoje tenho pena de não ter ido à escola.

E a D. Bia acrescentou mais:

– Eu tenho os problemas que tenho, porque os meus pais já eram velhos quando eu nasci. Já não era altura para terem filhos.

No obituário está a idade da falecida, 87 anos, nascida, portanto, em 1933, com o Estado Novo a despontar.

Em 1933, o Entroncamento ainda tinha muito de republicano e anarquista. Durante a Primeira República, que terminou em 1926, tinha existido no Entroncamento o maior núcleo ribatejano de membros da Associação do Registo Civil, que era antirreligiosa e anticlerical. E quando se falava do Entroncamento, no Parlamento, ou em correspondência oficial, a localidade era caracterizada como um meio revolucionário.

Mudou o regime, mas não mudaram os ideais de quem os tinha bem arreigados. Manuel Francisco assistiu ao triunfo da Revolução de Maio de 1926, à Ditadura Militar, e à implantação do Estado Novo com todas as suas consequências, condensadas em três bases essenciais, Deus, Pátria e Família, mas continuou republicano. Não seria propriamente o crucifixo que o incomodava, mas o saber que a educação cristã estava presente nos atos escolares.

Se Bia tinha nascido em 1933, ela teria de ingressar na escola em 1940, aos 7 anos.

Nos anos trinta e quarenta, as crianças das escolas com os respetivos professores tomavam parte em atos cívicos de apoio ao regime, e em atos religiosos.  A religião estava sempre presente na vida escolar.

Quanto ao crucifixo, a sua presença nas salas de aula foi legislada em 1936 pela Lei n.º 1.941, Base XIII, que dizia o seguinte:

Em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição. O crucifixo será adquirido e colocado pela forma que o Governo, pelo Ministério da Educação Nacional, determinar. Diário do Governo, I Série, de 11 de abril de 1936.

Foi no obituário do jornal Entroncamentoonline, que eu soube o verdadeiro nome de Bia e foi uma surpresa, o nome que eu menos esperaria: Maria de Jesus.

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