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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Durante muitos anos, por razões profissionais e pessoais, bem conheci o Bairro Coferpor, o bairro da minha escola, de amigos próximos e de pessoas a quem me ligavam (e ligam) relações de simpatia e cordialidade ou de simples cumprimentos de cortesia urbana. O bairro respirava, na rua, nos bancos de jardim aí instalados, nos cafés ou dentro das casas onde eu entrava, uma verdadeira atmosfera da cultura alentejana e de todas as suas idiossincrasias. Havia (e ainda há, mas muita gente já retornou ao seu Alentejo ou partiu para o inevitável país desconhecido) um ambiente verdadeiramente alentejano, não na horizontal, em casas térreas, caiadas e de barras azuis, ocres ou amarelas, mas verticalmente, em prédios de vários andares, frentes, esquerdos e direitos, numa acomodação em que se procurava aglutinar a alma da província de onde vinha a sua criação com as exigências da industrialização, dos turnos nas oficinas e no movimento dos comboios e de uma sociedade suburbana e de massas. Habituei-me, por várias razões e incidências, a ver no bairro um verdadeiro enclave do Alentejo, uma alma alentejana transferida para longe das suas raízes, mas sem lhe perder a seiva. E não era só no seu falar, no seu sotaque, de onde ele está mora um alentejano.

É uma entoação tão típica e identitária, que, décadas depois de viverem no Entroncamento, ainda a preservavam quase imaculada, e de certa maneira revelador de que, se tinham mudado por fora, por dentro mantinham o seu carácter na íntegra e a sua natureza original de transtagano. Saíram do seu Alentejo à procura de uma vida menos má, numa cidade nova, onde seriam pobres ou remediados, mas já não teriam de suportar as agruras das ceifas nas searas, das idas penosas para o monte, para as herdades e para os montados, da vida agrícola, de água por um odre e de “uma sardinha para dois”. O Alentejo, e no caso do Entroncamento devemos falar mais do que fica mais a norte, tem a sua cultura própria, a do ato gregário a cantar no largo ou junto ao café ou à taberna, o jogar cartas na rua e a revolta contra os exploradores nos campos. Era esta a alma que vivia neste enclave do Alentejo, foram, aliás, os silvos das velhas locomotivas a vapor que os foram despertar e arrancar à sua terra transtagana, o que não deixa de ser curioso, porque foram dessas terras e das freguesias rurais que o caminho de ferro foi bordejar ou passar por perto que vieram mais famílias quando a comboio expandia e a CP recrutava para o movimento, para as linhas ou para as oficinas. E daí surgiam os ranchos, provenientes sobretudo do Alto Alentejo, Torre das Vargens, Aldeia da Mata, Castelo de Vide, Marvão, Beirã, Vale do Peso, Crato, Portalegre, Assumar, Santa Eulália, Elvas… Muitos deles manteriam aos fins de semana os elos afetivos e físicos ligados com as suas origens. “Fomos à terra…”, diziam, e regressavam ao domingo. Os filhos também diziam logo no início da aula segunda-feira: “Professor, fomos à terra…” E eu já sabia que isso equivalia a dizerem-me que não tinham feito o sagrado trabalho de casa…

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Hoje, por motivos diferentes, por força das também sagradas caminhadas, continuo a passar com frequência pelo Bairro Coferpor, o produto da cooperativa onde pontificava com esmero e denodo o saudoso amigo João Lopes Caldeira. Mas a grande urbanização, iniciada na década de 1970, com algumas centenas de fogos gerados pela Cooperativa da Habitação Económica Ferroviários de Portugal, com o apoio do Fundo de Fomento de Habitação, está hoje muito diferente do que foi há alguns anos. E damos conta dessa mudança abrupta logo que pelo ciclopedovia nos aproximamos daquele mundo começado a edificar há cerca de cinco décadas, e em que então os blocos habitacionais irrompiam do chão como cogumelos em torno da velha Escola Preparatória do Entroncamento, atualmente a E/B 2,3 Dr. Ruy d’Andrade. Hoje, a ciclovia, as esplanadas, os estabelecimentos comerciais e os espaços públicos do Bairro Coferpor continuam fiéis ao idioma de Camões, Pessoa e Saramago, mas o sotaque já não vem do outro lado do Tejo, mas do outro lado do Atlântico, o bairro rejuvenesceu, os seus velhos habitantes proletários, morenos, de bigode ou patilhas, camisa aos quadrados, samarra ou capote pelos ombros, convicções arreigadas na mente e um pouco solitários, regressaram ao seu Alentejo, ou recolheram-se a um recato e já pouco vem à rua. E agora a alma que por ali se renova tem um novo sotaque, outras tonalidades e timbres, cumprimenta com “Ôi cara!…”, e viveu intensamente, incluindo com bandeiras nas varandas e nas janelas, a recente disputa eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, embora me tenha parecido que bastante mais inclinada para o lado de Lula.

Como nos mais históricos bairros de Lisboa, das janelas dos apartamentos saem risos de homens, mulheres, adolescentes e crianças, ouve-se samba (aos fins de semana) e altos acordes do rap indignado de São Paulo antes deles, admiramos o futebol de rua, o mesmo onde cresceram Pelé, Garrincha e Amarildo, e até dá para sentir os aromas mais coloridos e típicos da sua culinária. Aqui, a feijoada com feijão preto (aos sábados), a moqueca, o frango com quiabo e a galinhada, parecem estar a substituir as velhas açordas alentejanas, os ensopados de borrego, o pão com presunto e um tinto da Vidigueira, ou o borrego assado no forno e uma sopa de toucinho, que bem nutriam o corpo pachorrento depois das oficinas e consolavam as almas no enclave, onde as vizinhas também trocavam raminhos de salsa, de coentros ou de hortelãs cultivados nas varandas, como quem queria mostrar assim a sua solidadriedade. Já não se grita pelo Benfica e Sporting, mas há torcedores entusiastas (pelo menos) do Flamengo e do Palmeiras, com jogos que também passam pelos canais de televisão. E também o léxico, as gírias e as alcunhas têm o seu reverso. Aqui no bairro “Olá” agora é Ôi, “telemóvel” é celular, e “talho” é açougue  ̶  de pouco parece ter valido o Acordo Ortográfico de 1990, ainda hoje pomo de não poucas discórdias. Não sei ao certo se é um processo de gentrificação o que ali está a decorrer  ̶  não tenho a certeza se quem chega é muito mais abastado do que quem lá vivia antes, como acontece na gentrificação, mas é possível que não. Mas é um processo de grandes mudanças culturais e sociais que ali, como um pouco pela cidade, está a decorrer.

Poderá o leitor agora pensar que o Bairro Coferpor e, por extensão, o Entroncamento, estão a passar por um curioso e profundo processo demográfico (que certamente merecerá a atenção e estratégias adequadas de integração social por parte das autarquias)  ̶  e estão diferentes. E, em certa medida, isso é não só óbvio como verdadeiro. Mas há também que sublinhar que, a uma escala diferente, o Entroncamento continua igual a si mesmo e ao que sempre foi. Assim mesmo.

O processo demográfico atualmente em curso na nossa cidade, com a vinda de imigrantes, sobretudo do Brasil, mas também de outros países lusófonos, europeus e da Ásia, é, numa escala distinta, um déjà vu do que ela sempre foi.

Cidade fundacional, sem castelo nem foral antes, o Entroncamento é um fruto direto da saga dos caminhos de ferro em Portugal na segunda metade do século XIX. E desde então tem sido terra de acolhimento da maioria de nós. Pequenos ou adultos, a maioria da população veio de outras paragens. Uns vieram do Alentejo, sim, mas somos também, e muito, beirões, estremenhos, do Norte e de outros burgos do Ribatejo. Todos vieram para cá trabalhar, na CP, nos quartéis da região, no comércio ou nos serviços e indústrias, deixando as aldeias e à procura de uma vida um pouco melhor. Exatamente o mesmo que estes novos concidadãos. Nada de novo, portanto. É verdade que dantes a imigração era interna, e agora vêm pessoas de todos os meridianos, latitudes, línguas e etnias. As distâncias aumentaram muito, e estão agora à dimensão que a globalização permitiu. Mas, no essencial, o que se está a passar é igual ao que no Entroncamento sempre se passou.

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