Muito para além da impressionante (e emocionante) manifestação nacional que os professores portugueses realizaram ontem para encher o Marquês de Pombal, a Avenida da Liberdade e o Terreiro do Paço, em Lisboa, dos Caretos, das vuvuzelas, dos bombos, das bandeiras, dos cartazes, das cores, das faixas negras, dos sindicatos, das palavras de ordem ou até das formas que usaram para, de todo o país, de Caminha a Lamego e Alfândega da Fé, e de Vila do Bispo a Castro Marim e Barrancos, poderem aí estar presentes, importa dizer com rigor o que mora nela, e muito para além dela. A palavra Respeito, reiterada como leitmotiv em muitos dos cartazes e palavras de ordem, traduzia transversalmente e em modo sintético o que vai na estoica alma dos professores. Mas essa palavra (ou melhor, a sua permanente omissão por parte dos sucessivos governos do país nas duas últimas décadas) concentra outras que também podiam ser evocadas.
É difícil alguma classe suportar com mais estoicismo, dor e sentido de responsabilidade do que os professores o que tem sofrido. O sentimento que lhes é transversal e comum é também o de outro “erre”, o “erre” com começa a palavra Revolta. E há ainda um outro aspeto que se deve conjugar com o seu protesto, que atesta, e que ultrapassa em muito, a métrica estritamente corporativa (salários, progressão nos escalões, congelamento das carreiras, horários, custos de deslocações, habitação para uma vida de nómada…) para configurar uma dimensão maior, a Responsabilidade pelo presente e pelo futuro da Educação em Portugal, o serem os últimos guardiões de um tesouro, que tão maltratado tem sido por quem dele devia cuidar e nele se devia esmerar, pois é aí que está a riqueza da nação. Os professores, que naturalmente conhecem melhor que ninguém a realidade das escolas portuguesas querem salvaguardar a sua dignidade e as suas condições de trabalho. Tudo desprezado pelos governos do país, sobretudo os das tristes eras de José Sócrates, Passos Coelho e António Costa (PS, PSD, CDS e, por via indireta da geringonça, o PCP e o Bloco a comungarem dos mesmos dislates), todos com iguais ou proporcionais responsabilidades no caso). Mas o protesto vai muito mais além do que isso. O seu protesto significa também um alerta, uma chamada de atenção urgente aos pais, aos avós, à sociedade e ao país, e, hélas, a um Presidente da República em deriva.
O que se tem passado na Educação pública, sempre em ziguezague entre a tragédia, a farsa e o faz-de-conta, põe à vista a falta de uma liderança idónea e séria do país. Neste sentido, e porque a sociedade portuguesa também começou a prestar mais atenção a algumas medidas do Ministério da Educação (ME) e das suas distópicas sucursais cheias de ilusões pseudoigualitárias, as sucessivas greves e manifestações têm atraído uma crescente compreensão da opinião pública para a ofensa e a desvalorização económica, profissional e social da classe docente. Mas há outras vertentes em que os Governos têm maltratado os professores, como a da Desconsideração Científica e Pedagógica e até, indiretamente, por via de uma burocracia doentia, de uma certa Desconfiança Pessoal, já que muitos procedimentos (sempre registados em papéis ou abundantes plataformas tecnológicas) resultam simplesmente de uma falta de confiança que o sistema criou injustamente em seu redor. A desconfiança tornou-se institucional, e a escola impessoal. Valoriza-se o mantra da irrelevância, da retórica e do facilitismo (incluindo a tentativa de abolir os exames nacionais, seguida de novo ziguezague), e esquecem-se valores como o trabalho, a disciplina, a criatividade, a inovação, o conhecimento, a autossuperação ou a capacidade crítica.
É da dignidade da profissão que se trata, e do futuro do país, e os professores não querem ser cúmplices de tanta irresponsabilidade dos titulares da pasta da Educação, e de quem mais diretamente os serve, verdadeiros papas do “eduquês” e da sua ideologia distópica. Os professores estão solidários com o país, e a sociedade deve-lhes essa coragem e solidariedade.
Por isso, os sucessivos Governos conseguiram transformar a que já foi a “melhor profissão do mundo” (não pelas retribuições financeiras, mas pelo sentido de missão vivido pela maioria dos docentes, e pela realização profissional e até pessoal que possibilita) num inferno burocrático, que não tem outra finalidade senão criar um império de mediocridade, mesquinhez, mentiras (entre as quais as das estatísticas), e de desconfianças que levaram à criação de um monstro burocrático e alucinado nas escolas. Algo que bloqueia a empatia, muitos valores nobres e valiosos, tudo o que de melhor a escola tem para oferecer.
Não sendo professor ou educador, é muito difícil ao leitor aperceber-se sequer aproximadamente, do conjunto de medidas e procedimentos que asfixiam os professores e quase impedem as escolas da sua missão de ensinar, desenvolver e formar jovens e preparar cidadãos que garantam a nobreza e o reconhecimento do nosso país. Não é possível enumerar a lista desse generoso rol de barbaridades pomposas e inúteis com que os inspiradores do “eduquês” eivaram as escolas públicas do país, uma apocrisia legislativa absurda e intragável iniciada a sério em 2005, no mandarinato infeliz de Sócrates, e que nunca mais parou de se autorreplicar. Tem duas características inapagáveis: a flexibilidade do ziguezague e a incapacidade de ver mais longe do que o amanhã e os resultados que já nada significam.
Os professores esgotaram-se a escrever em papéis e a preencher plataformas rígidas (para todos os gostos e irritações), documentos e minudências estatísticas que vão do inconsequente ao patético e em nada beneficiam os alunos. São, a propósito de tudo e de nada, planos, PAA, PCT, PEI, programas e projetos, PIEF, relatórios, tabela e matrizes, RTP, REPA, RGHR, fichas diversas, adaptações múltiplas, atas, sínteses, avaliações e autoavaliações, acomodações, reflexões, supervisões, DAC, PCA (não se preocupe o leitor se não entender muitas das siglas – são absolutamente inócuas e sem qualquer utilidade, na página da Internet do ME poderá encontrar eventualmente ainda muitas outras). Ser diretor de turma tornou-se no equivalente moderno a uma condenação às galés no século XVI, só que sem crime, nem condenação. Os professores têm um horário legal de 35 horas por semana, mas há estudos que indicam que, em média, trabalham 46, muitas delas em casa. E perderam o otimismo que já tiveram, pois o tempo que deviam dedicar aos alunos na sala de aula, a conversar com eles, a efetuar experiências e a descobrir os seus talentos, é incinerado na miséria dos papéis…
Nesta altura o leitor poderá perguntar por que razão, apesar destas penosas considerações, Portugal ainda tem resultados internacionais regulares que os colocam bem acima da mediana dos países mais desenvolvidos do mundo, como são os casos das avaliações do PISA (Programme for International Student Assessment) ou do TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study). São um facto. Mas nesta altura já deverá estar a refletir de onde vem o vento a favor e o que sopra contraproficiência dos alunos portugueses…
Passo a fazer referência ao estudo Porque Melhoraram os Resultados PISA em Portugal, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2017: “No que respeita ao apoio que recebem dos professores, em 2015, os alunos portugueses foram os que avaliaram melhor os professores nesta questão, seguidos dos alunos finlandeses; aliás, Portugal é o país onde consistentemente os alunos mais reconhecem o trabalho e disponibilidade dos professores. Desde 2003 que Portugal tem sempre níveis muito acima da média da OCDE”.
Os malefícios causados pela irresponsabilidade do “eduquês” ao país são grandes e vão ser mais óbvios dentro de alguns anos, mas á possível antecipar já (mesmo sem bola de cristal) um dos danos: uma magnífica geração de inaptos, impreparados e incapazes de lidarem com o esforço, a exigência, a disciplina, a cooperação, o sentido de grupo, e muito menos de chegar à autossuperação e à excelência. E no “eduquês” se esgota a imaginação destes titulares visionários, sob a bênção distante do Primeiro-Ministro e a complacência quântica do Presidente da República que, tendo sempre uma opinião, uma selfie e um comentário a propósito de tudo e mais um par de botas, neles esgotou a sua coragem, limitando-se depois a vaticinar (leu nas mãos?) que os professores (condição de que comunga em título, mas já não pratica) correm o risco de perderem a simpatia da opinião pública. E quando é que a iriam reganhar? Quando desistissem?
Não desistam, professores. O país saberá agradecer