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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Seguem de coletes coloridos estrada fora, metade pela berma, a outra metade ao lado, a pisar com temor e timidez o asfalto negro. Vão em bandos, como revoadas de estorninhos, desfrutam da liberdade de um compromisso que livremente assumiram, e que agora, nestes dias de maio se empenham em cumprir e honrar. Vindos, com mais adequação eu devia dizer vindas, do Alto Alentejo, quase sempre agregados e em confraternização coletiva, atravessam Constância, passam por Vila Nova da Barquinha e, pela nossa cidade, rumam à estrada do Alvorão, à serra e a Fátima, a Cidade da Paz. Perguntam quanto falta, sete léguas mais ou menos, sabem disso pelo GPS, mas parece que a informação tem outro valor e é mais autêntica se dita por alguém que noutras alturas também já as poderá ter percorrido e sofrido.

Nestes últimos dias os peregrinos seguem os caminhos com que puseram entre parêntesis a sua rotina diária e calcorreiam as distâncias que os separam do altar mariano de Fátima, quase sempre, quando o grupo é maior, atrás de um homem ou de uma mulher que empunha de pulsos erguidos uma bela cruz de madeira, por vezes enfeitada por fitas de muitas cores e ornatos, e algum malmequer, pampilho ou rosmaninho apanhados da berma da estrada. Por vezes agremiados e apoiados pela paróquia ou diocese, outras pelas juntas de freguesia ou pelas câmaras, os bombeiros também ajudam na organização e a valer a quem precisa. Empreendem por um pedido ou pelo cumprimento de uma promessa em cortejos que este ano engrossaram muito, talvez porque se acumularam os pedidos e as promessas que não se puderam honrar em tempos da pandemia. Vêm, coletes cor de laranja ou amarelos fluorescentes em destaque, do Crato, Sousel, Avis, Estremoz, Marvão, Monforte, Fronteira, e até de mais longe, de Redondo e de Moura, vêm conduzidos pela fé, e com ela chegarão a Fátima, longe de chegarem com ela na reserva porque a fé usa-se, mas não se consome. Agora vão-se juntando sentados em bancos ou no chão à sombra de uns plátanos ou de choupos à espera que os últimos do grupo, de bordão com fitas e santinhos a arrastar pelo percurso, cheguem.

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Chegou a hora do almoço, e o restaurante já estava preparado para os acolher, juntando as mesas para reunir uns 50 caminheiros, conto sete homens ao todo, incluindo dois bombeiros, mas a maior parte faz o percurso integrado na logística, conduz as carrinhas de apoio, são aguadeiros, fazem massagens, um deles, no fim do pelotão, é o peregrino-vassoura, as peregrinações adotarem também agora, e adequadamente, a nomenclatura dos pelotões do ciclismo. Em cada dia na estrada, um deles será o peregrino-vassoura. Os caminhantes estão finalmente completos, e os tachos e panelas a fumegar começam a circular sobre as suas cabeças antes de aterrar nas mesas. Ensopado de borrego e sopa à lavrador com coentros! Foi esta a ementa escolhida, é a maneira de, mesmo em peregrinação para longe, continuarem a sentir-se no seu sagrado Alentejo. O repasto há de demorar quase duas horas, o alentejano é slow food, e há ainda tempo para umas cantilenas e cantes pelo meio. Coro misto, claro, já lá vai o tempo em que os corais eram reservados a homens, mancebos, e as mulheres se abstinham, com sorte ficavam a ouvir. E são elas as mais audíveis nos seus agudos estrépitos, algum tenor, se se destacar, é só porque vem desafinado, fora do tom geral ou acossado pelo tinto palhete da Vidigueira, que, pelo sim pelo não, também faz parte da logística como produto não só nobre como indispensável.

Uma alentejana, com mais alguma idade, mas não menos franzina que as demais, aproveita a pausa para ir até uma loja de conveniência junto ao restaurante, e enquanto os outros cantam ela assobia uma moda de que ainda se recorda de quando se curvava com uma foice nas searas daquele bendito Alentejo, e raspa de moeda em riste, uma raspadinha, que a fé não é só matéria de religião, mas também uma atitude para a vida e vontade de tentar a sorte. E o almoço também há de mostrar que se é verdade que a fé não se gasta, o mesmo não se pode dizer do corpo, que a caminhada consome, e muito, sendo necessário repor as energias e o protoplasma para que o peregrino volte de novo à estrada.

Noto já há algum tempo, e cada vez isso me parece mais notório, não só a crescente presença feminina nestas peregrinações, ao ponto que já são amplamente dominantes nos cortejos que se formam, como na progressiva laicização destas caminhadas, hoje menos apegadas à religião, às velas, aos crucifixos e às rezas em grupo, e mais próximas do desfrute holístico de uma experiência pessoal ou da procura de algo espiritual, mas não confinado aos limites e aos rituais desejados pela Igreja. É verdade que entre os grupos de peregrinos ainda se encontram adereços religiosos, e há quem reze, mas essa já não é hoje a tónica dominante, os adereços mudaram, a religiosidade mudou. Cada um, mesmo com camaradas ao lado, sente a peregrinação como algo pessoal e a consagração, ou até fusão, de uma relação direta com a espiritualidade, sabendo que a glória de uma experiência inspiradora também vem da dor, e isso pode permitir uma verdadeira aventura de transformação. A presença feminina é também um significativo sinal dos tempos, e da forma como a mulher conquistou o seu território e ganhou liberdade numa sociedade que há apenas cinco décadas não era mais que um tacanho patriarcado.

Algures, numa das estradas que pela serra conduzem até ao planalto de Fátima, à sombra de uma improvisada tenda de lona branca de proteção, descansam os devotos já cansados do caminho, e agradecem a pausa refrescante e os propósitos samaritanos dos empreendedores. Mas já não podem fazer o mesmo em relação aos preços praticados, uma exorbitância pouco católica a pagar por qualquer bagatela que se pudesse comer ou beber antes de prosseguir. Puro oportunismo de medíocre comerciante, que nada tem de cristão, mas a atestar que, nesta modalidade, muitos continuam a não olhar a meios para chegar a estes tristes fins. Assisto a este desatino, com a alma assada, e coloco-o nos antípodas de uma peregrina, de entre os 30 e 35 anos, que há uns anos encontrei por esta altura do ano também já próximo de Fátima. Provinha de Vila de Rei e caminhava só e de salto alto, sim, a promessa feita era muito séria (um caso de uma doença grave, contou-me), impunha esse requisito, e nada podia quebrar a sua determinação para a pagar. O problema nem sequer era esse, o caso é que a jovem também ia grávida, e já muito adiantada na gestação. Como se sentiu algo indisposta, uma enfermeira voluntária de apoio aos peregrinos e ao serviço da Ordem de Malta, não hesitou em pedir logo uma ambulância para a socorrer. A mãe, obstinada, protestou, mas a enfermeira, que entendeu tudo muito depressa, teimou ainda mais. Abençoada! A mãe e o filho, nascido a caminho do hospital de Torres Novas, hão de ter ficado gratos para o resto das suas vidas…

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