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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Uma das formas mais canónicas que as cidades modernas têm de se mostrar a quem as visita, por elas passa apenas em trânsito e, last but least, aos seus próprios moradores e cidadãos, é a de zelar cuidadosamente pelas suas entradas e de assim mostrar a sua identidade e os seus ícones a quem chega, dizer-lhe que é bem-vindo e será bem tratado porque toda a urbe é tal como se evidencia neste primeiro contacto. Este efeito âncora é muito importante em diversas matérias, e tem particular relevância em tudo o que está relacionado com seres humanos, que são particularmente sensíveis à primeira impressão, ao primeiro sinal, à primeira vez.

Por este ponto de vista, o Entroncamento, ou para sermos mais claros, os responsáveis que na cidade (ou na região) têm tido as dignas mas impraticadas competências urbanísticas ao longo das últimas décadas, não têm tido igual dignidade na forma como as têm exercido. Vindos das cidades e povoações mais próximas, a primeira impressão que os nossos visitantes, turistas e nós próprios, de forma reiterada, obtemos da cidade é a de que reina o descuido, o abandono e, neste reino, se deixam arrastar estes sítios negros sem prioridades nem preocupações. E as responsabilidades destas incúrias estão longe de poderem ser atribuídas apenas à autarquia. Em vários casos, são-lhe, infelizmente, exteriores, embora fique sempre a ideia de que não se esgotam os mecanismos de intervenção e persuasão possíveis para pressionar e contribuir para a resolução dos problemas.

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Para quem chega ao Entroncamento vindo de Vila Nova da Barquinha, a primeira imagem é um pouco desoladora, com a decadência obscena que lhe é oferecida pelo friso de miséria escabrosa e de ruínas em pé no Bago de Milho, como é conhecido o enclave territorial que integra formalmente o município de Vila Nova da Barquinha e que dá a entrada no Entroncamento junto à rotunda da Ponte da Pedra, um local que foi abrigo de quem não o tinha em mais lado nenhum, e que nos últimos anos não é mais que uma paisagem que envergonha. Mas “pertencendo” de facto a um município e formalmente a outro, o Bago de Milho padece do mesmo mal que o cavalo que tem dois donos. Passa fome. Mas, para quem chega à cidade de outros pontos cardeais, também não terá forma de obter uma melhor imagem do Entroncamento. Para quem vem de Torres Novas, pode descortinar uma necrópole há muito ornamentada de toneladas de óxidos de ferro sobre antigas viaturas militares, que ali sepultaram o seu destino sem proveito nem reciclagem. Pouco depois, esbarrará o viajante com o destino espetral da outrora insigne Escola Camões, do bairro homónimo e da longa ala das antigas habitações de operários e funcionários da CP na Vila Verde. É um cenário de desânimo e de desolação, e também de uma história que ficou para trás, mas merecia melhor, não só com a sua reabilitação, como também com o resgatar das suas memórias. Do lado norte, pela Lamarosa e Barroca, somos contemplados com o templo do abandono eterno da cerâmica da Cascalheira e por outros pavilhões decadentes, e dos inevitáveis graffiti, que neles encontram sempre habitat propício e inevitável. E pelo sentido oposto, encontramos a decrepitude humilde do velho e abandonado Bairro Miranda e ainda oficinas com antigo material ferroviário chegado há muito a uma fase pós-musealizável. Tudo no perímetro ferroviário, devendo registar-se que quer este, quer as áreas afetas às unidades militares, são domínios tabu no concelho, reservados às suas tutelas, é o intocável mas decadente complexo militar-ferroviário do Entroncamento. Não tivemos duques nem viscondessas que deixassem solares decrépitos, mas tivemos esta herança mais republicana, mas igualmente sombria.

O verdadeiro problema dos espaços abandonados do Entroncamento, que não se circunscrevem às zonas de chegada à urbe, como se pode ilustrar com raiva e sem solução com alguns bairros e arruamentos da malha urbana, é que eles arrastam ou atraem sempre algo muito mais complicado e perigoso consigo. Ao encontrarem territórios degradados durante anos sucessivos, sem que ali nada aconteça, nem ninguém intervenha, há sempre quem por intuição perceba que, tal como os pintores de graffiti, aquele seja um domínio capaz de servir os seus propósitos e esquemas que raramente serão virtuosos. É o efeito “vidros partidos” que correlaciona sem vacilar a desqualificação urbana com a criminalidade e o vandalismo. E a cidade tem sofrido e sido penalizada e assombrada por estes sinais que emite para o exterior, onde há sempre quem os saiba decifrar, e perceber a ausência de requalificação urbana. Há alguns anos o Entroncamento tinha uma movida noturna fulgurante que reunia centenas de pessoas sobretudo na zona dos bares do Casal Saldanha. O que sucedeu? Uma série contínua, vil e absurda de incidentes, episódios dignos do faroeste americano e perturbações causadoras de um progressivo mal-estar terminou em poucas semanas com momentos de tertúlia e convívio, e tornou essa zona do bairro num local sombrio e deserto. Há poucas semanas, ocorreu numa escola da cidade o triste e aberrante episódio da agressão inclassificável de adultos a uma professora que interviera para pôr fim a uma briga entre dois alunos. Dias antes deste episódio, e num registo que passou quase despercebido no frenesim das eleições legislativas no Entroncamento, o partido da extrema-direita Chega obteve resultados consideráveis no concelho, sobretudo na freguesia a norte de Nossa Senhora de Fátima, onde conseguiu quatro por cento da votação e se constituiu como a quinta força política mais votada, superando o CDS e o PAN. Nada disto – ecossistemas degradados, violência gratuita, ressentimentos sociais, desconfiança e respostas extremistas e radicais − pode deixar seja quem for tranquilo.

 

 

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