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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Há alguns anos, pessoa amiga e responsável por uma importante oficina de automóveis da região contou-me um episódio que lhe sucedera no próprio dia, e do qual, apesar da sua sólida condição psicológica, ainda não havia recuperado. Notoriamente, precisava de desabafar, de tirar para fora a bílis extra que acabara de segregar, e causada por uma cliente da oficina a quem prometera o conserto ainda complexo e exigente do motor do automóvel num curto prazo de tempo. Mas, por um imprevisto, não conseguira honrar o prazo de entrega do potente bólide descapotável à ainda jovem e fogosa proprietária, que por se sentir prejudicada, o invectivou inflamadamente com um vocabulário que se julgaria impróprio de quem tanto cultivava as aparências de beleza e poder, tanto no desportivo de alta cilindrada, como na forma como ela própria se exibia no corpo e na pose; de baixa cilindrada só, portanto, o carácter.

Este amigo, que faz dos compromissos com os clientes uma questão de honra e de ética na oficina que coordena, ainda procurou evitar a resposta curta, mas contundente, que se adequaria à gíria barata da mulher. E quis contornar a dificuldade que involuntariamente foi criada e a surpreendente ardência semântica da condutora, explicando-lhe as razões do atraso na entrega do Maserati azul-cobalto. Mas o que ouviu foram renovados impropérios reveladores de uma cultura de carroça, com o devido respeito. A verdade é que, ainda de madrugada, fora contactado por um responsável porque havia uma ambulância de um serviço de emergência médica que tinha avariado em plena autoestrada, e os serviços de socorro e urgência quer aos acidentados quer a pessoas que sofressem de colapsos críticos de toda a natureza ficavam seriamente diminuídos. Pela descrição feita, os dois homens ficaram logo cientes de que a avaria registada era séria, demoraria algumas horas e precisaria de muita técnica, persistência e engenho. O mecânico-chefe encomendou logo as peças que supôs serem necessárias… Ainda ponderou o facto insanável de o arranjo do Maserati ficar para trás, e não poder cumprir a sua palavra. Mas a sua consciência falava agora mais alto do que a palavra prometida, e uma vida humana devia prevalecer sobre o código de ética de uma simples oficina de automóveis, mesmo que de cilindrada elevada. Para ele tornou-se claro que, havendo um conflito de interesses em causa, o interesse público deveria sobrepor-se, sobretudo porque uma ambulância da Emergência Médica arranjada, disponível e a poder percorrer muitos quilómetros em pouco tempo poderia significar o resgate ou mesmo a restituição de seres humanos à vida. E ele, que tinha valores, princípios e um carácter de alta cilindrada, teria era de viver e mesmo adormecer com a sua própria consciência, não com o que sibilasse uma qualquer megera, campeã do insulto, por mais ameaças que zunisse, incluindo a de destilar todo o seu mau humor no livro amarelo de reclamações da oficina.

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Esta semana este amigo ligou-me, lembrara-se do episódio, acalmara a sua tensão nervosa com o desabafo, que, como um caldo de galinha ou um chá de erva-cidreira, sempre dá calma e algum alívio. Tinha que me contar! Pois o episódio já antigo tivera agora desenvolvimento: um segundo ato, porventura aquele que lhe dava sentido e continha sentido e significado. O que me dizia vinha entrecortado com a emoção de alguém que, para lá de um mecânico competente e de saber ressuscitar carros, é também um homem com uma rara capacidade de estabelecer empatia e valorizar o que é humano. Tinha recebido três horas antes um carro especial na sua garagem. Um Maserati. Azul-cobalto. O mesmo que motivara a querela do episódio de má-criação. O carro vinha bastante maltratado, mas recuperável. Um acidente numa estrada de montanha originara o despiste. Por uma daquelas ironias da vida, a proprietária tinha sido conduzida com uma fratura exposta da perna, ferimentos profundos e complicações graves no crânio, o filho ficara com algumas feridas, mas sem gravidade. Ao que lhe disseram, o socorro do INEM fora bastante rápido a chegar e a transportá-la até ao hospital da capital. E ouviu este comentário de quem lhe levou o carro agora rebocado: “Ouvi dizer que com a gravidade das lesões que sofrera, alguns minutos a mais ou a menos podiam fazer muita diferença”. A história parece perfeita, mas é real, e talvez com um fim feliz. Soube pouco antes de escrever esta crónica que a condutora e o filho já se encontram fora de perigo.

O busílis do caso é que a capacidade para nos colocarmos na posição dos outros é um bem cada vez mais precioso, talvez por ser também mais escasso. A maioria abdica de valores e princípios, por mais civilizacionais que sejam, e zela apenas nos seus próprios interesses, por mais mesquinhez que comportem. Há muitos maseratis e carros azul-cobalto a circular pelas ruas e estradas desta república em que o egoísmo e a indiferença já reinam como monarcas. Mas, felizmente, ainda resistem velhos mecânicos que conhecem também as pessoas, talvez mais que os automóveis, por mais que saibam desmontar os seus motores.

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