Mariam (um nome fictício que protagoniza uma história real) tem cerca de 40 anos, reside numa aldeia cerca de 30 quilómetros a sul de Coimbra, não muito longe da estação de caminhos de ferro que habitualmente utiliza. Conversei com ela algum tempo há umas semanas durante numa viagem até Lisboa. E, apesar de conhecer muitas outras histórias, fiquei impressionado. É professora. Todos os dias vai de automóvel da casa na aldeia até essa estação, onde toma o comboio que a levará à estação do Oriente, e daí, em transporte público ou no automóvel de uma colega da sua escola (às vezes de táxi) vai até à sua escola no Montijo, já margem sul do Tejo. Cada dia na sua escola era igual ao anterior e havia de ser idêntico ao seguinte, reuniões, relatórios, atas, mais reuniões, o preenchimento até à exaustão e ao desespero de absurdas plataformas eletrónicas, e no final do dia, regresso pela via recíproca, automóvel da amiga (ou autocarro), comboio e o carro próprio da estação de chegada até casa. Quatro dias por semana assim, todas as semanas, há dois anos. E tudo porque, divorciada e com dois filhos ainda muito pequenos em casa ao encargo da mãe, não estava preparada mentalmente para estar um dia sequer sem ver e falar com os pequeninos, que corriam para ela felizes para a abraçar logo que metia a chave na porta de casa. Era o momento zen de cada um deles, esse momento compensava todos os esforços e sacrifícios de Mariam ao longo do dia, e dava também alento para o seguinte. E também me disse que, nessa altura, os custos mensais que suportava ultrapassavam as entradas na bolsa, com um vencimento insuficiente, tudo em nome de um tempo de serviço para que amanhã não perca os direitos a continuar esta vida, a que só o brilho de dois pares de olhos ao final do dia davam fôlego e ânimo. Desses, e também os dos seus alunos no Montijo, onde alimentava também a sua paixão de ensinar, assumindo que essa era a sua missão. Não sei para quantos mais anos irá dar o pavio do estoicismo desta heroína do quotidiano, para quem o sonho de, como me disse, estar na “melhor profissão do mundo”, e a materialização dos seus seus de adolescência, se converteram num inferno em combustão lenta, demorada e extenuante que, no caso da classe docente, tem causado casos em massa de burnout, depressões, esgotamentos físicos e mentais, e muita desilusão.
Esta história no singular poderá parecer um caso pessoal extremo, mas há inúmeras outras situações de muitos professores e professoras em que a aspiração de chegar à “melhor profissão do mundo”, que muitos julgaram ter alcançado e abraçado no início da sua carreira, se transformou numa atividade semiproletária, semiburocrática, semitudo. E muito mal paga. Em vez da empatia e da química que cada um procurava criar com cada turma para a nobre missão do desenvolvimento pessoal dos seus alunos, o professor foi destituído pelos sucessivos Governos, pelo menos desde o funesto mês de março de 2005 (e com a anuência por omissão ou consentimento tácito dos sindicatos), da sua autoridade pedagógica, natural e científica e dos propósitos por que trabalha para dar origem a um servil burocrata, encarregue de ser cada vez menos exigente e mais permissivo, e que no final deve apresentar índices de sucesso grandiosos, pouco importando se eles têm alguma relação lógica com a realidade. São normas muito legais e pouco éticas que sucessivamente caem sobre os seus ombros, e às quais lhes resta prestar vassalagem, caso contrário pode complicar a sério a sua vida profissional. Normas, leis, decretos, regulamentos e circulares, uma incontinência legislativa, tudo numa espiral de disparates criados numa torre de iluminados, que tiveram uma visão desligada de qualquer sentido da realidade, e tudo sem lhes pedir a mais leve opinião sobre o mínimo assunto. Um servilismo público que se desempenha sem alma nem emoção para cumprir um horário de expediente e executar funções e serviços que já pouco se relacionam com os alunos, a sua formação e as suas aprendizagens. Um mundo frio e calculado em que tudo vive para contemplar e ser engolido pela estatística e por uma burocracia voraz e insaciável, exorbitante e sugadora das melhores energias, que procura dizer que é o que realmente não é.
Há uma história que se conta de um sapo que um dia foi lançado, sabe-se lá porquê, para dentro de um panelão de ferro com a água a transbordar e à temperatura ambiente, e quis o autor e aprendiz de feiticeiro colocar o recipiente sobre uma fogueira branda para ver o que aconteceria. E foi ficando com uma atenção maquiavélica ao comportamento reativo que doravante o sapo teria. E o que, para surpresa sua, viu foi que o sapo nunca saltaria para fora do panelão, foi-se adaptando, ajustando e conformando com a gradual elevação de temperatura. Foi sempre ficando, e sempre adiando o salto para fora da sua lenta cozedura. Até que a temperatura ficou já muito elevada, e o sapo, mesmo querendo dar esse pulo dali para fora, mas já desfalecido pelo calor, não teve energia para o fazer. Pouco depois, com a água perto do ponto de fervura, e totalmente exangue, morreu.
Mutatis mutandis, esta parábola um pouco triste (apesar da má reputação do anfíbio), mas muito pedagógica em relação a muitas vicissitudes públicas e de alcova, é possível de ser aplicada à condição profissional, psicológica, ética e social dos docentes portugueses. E o caso nem é desde dezembro do ano passado, mas vem de há muitos anos e surge uns ministros e chefes do Governo depois, pelo menos desde o fatídico mês de março de 2005, altura em que outros aprendizes de feiticeiros (e de feiticeiras, esclareça-se) encetaram a longa odisseia de colocar os professores, os alunos e todo o sistema educativo à prova de experiências parecidas com as do panelão, e foram observando o que aconteceria, sem nunca se esquecer de ir lançando mais umas lenhas e umas cavacas para o fogo. Agora uma norma e um preceito jurídico, para a semana um despacho e dois decretos regulamentares, logo depois uma nova circular, uma portaria e dois ou três decretos-leis, no mês seguinte mais uma panóplia legislativa promulgada para revogar metade dos diplomas anteriores e acrescentar outros tantos num ziguezague persistente e contumaz. Tudo isto resultou numa tenebrosa e asfixiante burocracia criada para que a intenção do sucesso por decreto sufocasse a verdade, e impondo-se um sistema de avaliação perverso (em que a cooperação entre professores foi trocada pela competição em torno de quem chegaria aos eleitos das quotas e dos diretores) que tornou a atmosfera nas escolas fria, despersonalizada e quase irrespirável.
Os professores contestam e manifestam hoje um descontentamento que já vem de há muito tempo, a que também não é alheio a penalização nas carreiras e a desproporção entre o que investiram na sua formação académica e o que lhes é retribuído no final de cada mês. Têm razão, não se sentem recompensados nem reconhecidos e muito menos acarinhados, e tenho a convicção que cada um deles lamenta muito mais do que toda a equipa ministerial da Educação (por junto) o prejuízo que causam naturalmente aos seus alunos, às famílias e até ao país. Os sucessivos Governos foram apostando em ir deitando mais achas, lenhas, toras e cavacas para a fogueira, jogando assim na lenta cozedura da classe que, inane, já não teria energia para sair do panelão. Enganaram-se, e isto acontece muito aos aprendizes de feiticeiro. E as greves, as manifestações de rua, a contestação geral e o grito de revolta da classe aí estão para dizer “basta” a tanta falta de consideração, desautorização e falta de sensibilidade dos Govenos para com uma classe que tantas Mariam tem.