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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Por vezes os números não são mais que números. Só isso mesmo. É um truísmo amplamente reconhecido e aceite. E também é plausível admitir que deviam contar menos do que os seres humanos, embora seja o contrário o que infelizmente mais sucede e se pratica. Mas quando os números são sobre pessoas, e estas pela sua dimensão e natureza são nossos concidadãos, o caso deve dar para refletir com tempo, seriedade e alguma proação.

Entre o início deste ano e a passada quinta-feira, 25 de agosto, o número de pessoas estrangeiras que passaram a viver no Entroncamento (ou aqui foram registados pela primeira vez) foi de 826, é este o número de novos residentes da cidade – 469 novos habitantes estrangeiros de 17 nacionalidades distintas na freguesia de Nossa Senhora de Fátima (NSF), e 357 de nove nacionalidades na freguesia de São João Batista (SJB). Nesta freguesia do sul da cidade, a nacionalidade brasileira é a mais representada (são 251 pessoas), seguindo-se, pelo número de cidadãos já residentes, os angolanos (56), ucranianos (12), caboverdianos (sete), da Guiné-Bissau (sete), indianos (seis), colombianos (três), de São Tomé (um) e da China (também um). Apesar de não dispormos de informações mais detalhadas da freguesia de NSF, é plausível que o perfil destes cidadãos de outros países dê igualmente a predominância a cidadãos oriundos do grande país-irmão da América do Sul, seguindo-se naturais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), da Ucrânia (na vaga de solidariedade da Europa depois da invasão russa do país), e de outras origens. É de acrescentar que estes são apenas os registos nas freguesias ao longo deste 2022. Outros terão efetuado os seus registos em anos anteriores, e outros ainda simplesmente residem na cidade e trabalham nela, ou fora dela, mas não estão registados como tal. Se seguirem as estimativas e projeções que se fazem para o país, serão outros tantos. Rui Maurício explica e esclarece o caso pela circunstância de que a maioria destes novos entroncamentenses só procuram as juntas quando precisam de algum atestado ou documento indispensáveis para recorrerem à frequência das escolas e dos centros de saúde e serviços médicos ou outros, incluindo os de finanças.

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Segundo o presidente da junta de SJB, Rui Maurício, o Entroncamento tornou-se um íman de atração de comunidades que escolheram Portugal para viver por duas razões fortes, convergentes e conjugadas. Por um lado, a cidade tem uma boa oferta de casas disponíveis e baratas, e os arrendamentos também estão longe de ter os custos exorbitantes que se verificam noutros médios e grandes centros urbanos; e, por outro lado, a facilidade de deslocação nos caminhos de ferro do Entroncamento para Lisboa e toda a região envolvente de capital foi ainda catapultada nos anos mais recentes pela considerável redução no preço dos passes para viagens de comboio, o que estimulou bastante o binómio “trabalhar em Lisboa/ residir no Entroncamento”, o que os custos baixos das residências e dos transportes permitem.

Um elevado número de cidadãos opta mesmo pela compra de casa no Entroncamento e, não trabalhando na Área Metropolitana de Lisboa, é também comum que, com a residência na nossa cidade ferroviária, optem por trabalhar em Torres Novas ou Tomar – e, antecipando-me um pouco, futuramente em Vila Nova da Barquinha, onde está previsto que, até ao final deste ano, algumas unidades industriais a criar gerarão 500 novos empregos diretos (e possivelmente um número semelhante de postos de trabalho indiretos).

É claro que todo este acréscimo populacional na cidade, bem visível e evidente sobretudo nas ruas e praças de maior comércio, serviços e centralidade, mudou o rosto do Entroncamento, transformado-o numa Babel de línguas, num cosmos de culturas e condições, e numa paleta de cores e de religiões (sim, e são muitos já os templos de distintas fés, credos e esperanças que substituíram locais onde outrora prosperaram alfaiatarias, livrarias, sapatarias e os comércios tradicionais). Num curto período de tempo, que em rigor vem já de há uns anos para cá, o Entroncamento não só mudou como parece ter-se transfigurado, deixando para trás os ses traços paroquianos e familiares, onde quase todos se conheciam – e havia figuras de referência que todos conheciam e (quase) todos admiravam – para ser um espaço cosmopolita, onde impera a indiferença e é extraordinária a quantidade de pessoas desconhecidas com que nos cruzamos, e de idiomas nas pedovias, nalgum café ou em esplanadas, que nos são completamente estranhos e bizarros.

Dá-se o caso de ainda há poucos dias eu estar com um amigo numa esplanada da cidade com um magnífico lago polivalente que serve de bebedouro a cães, gatos, pombos e toda a espécie de passarada, e de palco para banhos a crianças e até a rapazolas que ali saltam gritam, se encharcam, e encharcam quem nas mesas tranquilamente bebe um café ou uma caneca de cerveja com os amigos. Acontece que numa das mesas mais próximas convivia animadamente um grupo de cinco jovens adultos quase de certeza indianos (não foi pela língua que os identifiquei, pois não falavam em inglês como é habitual nas suas lojas de telemóveis, mas, deduzi sem qualquer rigor, pois são 1200 os idiomas que ornamentam o vasto patoá do seu subcontinente). O caso não correu bem, pois os reparos dos indianos não foram aceite, os fedelhos abriam os braços, e gritavam com pretensa inocência:

− Eu não ti entiendo!…

E continuavam nas suas atividades hidráulicas e náuticas fazendo saltar lençóis de água do lago sobre as mesas circundantes, agora já não só dos jovens indianos (que abanavam as cabeças e acabaram por abandonar a mesa com as imperiais estragadas com a última chapada de água), como também de nativos de outros subcontinentes, como o sul-americano, com um grupo de brasileiras a manifestar-se à moda do nordeste, e o europeu, com três mulheres ucranianas a pronunciaram os que terão sido supostamente os mais genuínos impropérios do seu vernáculo, até que por fim os pirralhos lá foram chamados por quem de direito, mas já com um sabor a muito retardado.

E há realmente episódios do dia a dia bastante pitorescos, sendo os supermercados, quais catedrais dos tempos modernos, habitats bem apetrechados e adequados para alguns acontecimentos. Ainda esta semana, na fila para a caixa de pagamento, a Babel de línguas gerada foi fascinante, desde os mais efusivos crioulos africanos, às espantosas nuances de sotaques da língua de Camões e ao inglês de um casal de nepaleses (sim, e de Katmandu, a capital dos hippies) que procuravam a conta certa em euros para pagar os seus consumos. À minha frente um gigante africano exibia umas vestes coloridas, onde despontava um manto azul de cetim, raiado de exuberantes tons vermelhos e amarelos, mais próprios de algum sumo sacerdote indiano num cerimonial ou de um extraterrestre que de um simples humano com as mesmas carências que todos os outros desgraçados. A rapariga da caixa também, falava um expressivo português de Minas Gerais, e atrás de mim uma discreta e tranquila chinesa, começo a sentir que estou a precisar de mudar alguns circuitos neuronais para a nova cidadania que já ondula por aí, mas se me congratulo por tanta cor e idiomas, também lamento o mundo tradicional que se está a perder todos os dias, temendo que no final não fique coisa nenhuma.

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