Em outubro do ano passado, em cerimónia que contou com a presença da secretária de Estado para a Integração e as Migrações, Cláudia Pereira, o Entroncamento passou a contar com um Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM), celebrando-se igualmente nessa altura um protocolo em prol da causa com o Alto Comissariado para as Migrações, representado por Jorge Reis. Como foi divulgado, o Entroncamento acolhia então, para viver, trabalhar ou estudar, cerca de 600 pessoas imigrantes, garantindo o presidente da câmara, Jorge Faria, que “o Entroncamento tem vindo a aumentar a população, e muita dessa população vem de outros países”. Soube-se na circunstância que de 2018 para 2019 a população imigrante crescera 14 por cento, e constituía cerca de três por cento da população da cidade, que ronda os 22 mil habitantes. Muitos destes imigrantes são de origem brasileira, chinesa, cabo-verdiana e ucraniana, mas outros cidadãos de origem francesa, britânica, moldava, romena, angolana e outras trabalham, vivem e estudam igualmente na cidade.
No último domingo realizaram-se no nosso país as eleições presidenciais que culminaram com a vitória expressiva e prevista do Presidente da República em exercício Marcelo Rebelo de Sousa, confirmando pela quinta vez a reeleição do presidente em funções. Por esse facto, o foco dos observadores e analistas passou a centrar-se num campeonato secundário: a disputa privada entre Ana Gomes e André Ventura, a que se deu alguma evidência insuflada, atribuindo a ambos a função de lídimos representantes da esquerda e da direita (ou extrema-direita) portuguesa. Houve ainda alguma fricção ideológica, apesar da falta de comparência do Partido Socialista, que optou mais pela conveniência política que pela luta pelos seus princípios e ideais.
No Entroncamento a vitória da competição à margem do candidato-presidente foi para André Ventura, para quem convergiram 19,03 por cento dos eleitores, com uma votação ainda mais acentuada na freguesia de Nossa Senhora de Fátima (a zona a noroeste dos caminhos de ferro), onde o líder do Chega conseguiu a adesão de 20,84 por cento dos votantes fregueses. Os números não deixam de criar uma certa impressão: Ventura obteve no Entroncamento quase tantos votos como Marisa Matias (apoiada pelo Bloco de Esquerda, que no Entroncamento tem ou tinha um bastião, e onde costuma recolher votações muito elevadas), João Ferreira (do PCP), e a própria Ana Gomes juntos. Estes números têm naturalmente as suas circunstâncias, e a sua interpretação pode ser complexa, mas uma coisa é incontornável: dão que pensar, e muito. E o que é que eles dizem realmente do Entroncamento, o concelho do Médio Tejo onde André Ventura obteve a maior votação, e um dos concelhos do país onde o candidato da direita obteve melhores resultados?
André Claro Amaral Ventura, que se autocredencia como “liberal, nacionalista e conservador”, é realmente uma figura curiosa, desconcertante e um pouco contraditória, mas isso são minudências de análise, porque o que verdadeiramente importa é que os seus resultados a nível local (e nacional) têm bastante significado, e não só é fútil como irresponsável pensar o contrário. André Ventura começou por ser conhecido à frente das câmaras de um canal de televisão como adepto e comentador belicoso e apaniguado à defesa e ao ataque do seu S. L. Benfica, depois foi polémico militante numa cruzada antigitânica e com laivos de xenofobia, antes concluíra uma tese em que criticava a ostracização das minorias no país e o “populismo penal”, agora, na campanha eleitoral embirrou com os lábios de Marisa Matias e até se lhe ouviu (finalmente) a primeira crítica ao inenarrável Trump, que incensava, mas apenas para dizer que não soubera perder. Nas eleições de domingo obteve quase 12 por cento dos votos validamente expressos, e isso significa que praticamente um em cada oito eleitores portugueses (e um em cada cinco no Entroncamento) se revê na sua oratória, ou, se se preferir, André diz o que muitos, no seu íntimo, pensam – e pensam que o que pensam podia servir ao país.
Quem segregou e urdiu o Chega tanto foram, por dentro, os militantes mais integralistas da sociedade portuguesa, como, pelo exterior da moldura, os crentes do marxismo-leninismo, estalinistas e de outros fundamentalistas, com um discurso desproporcionado e totalitário de hostilização ao partido (incluindo a sua ilegalização) e caminharem a seguir para comungar sem remorso na orada das virtudes democráticas, como também a mentalidade hipócrita dos bárbaros do politicamente correto e da autocensura que se instalou no país. E, sobretudo, alguma comunicação social, com gosto e apreço pelas audiências, que lhe deu palco, e ele com provocações habilmente forjadas aproveitou porque sabe que são elas que povoam a agenda das media e também dos blogs e das redes sociais (onde possui os seus nichos de adeptos convictos).
Lidar com pessoas diferentes de nós, coisa que a globalização tem feito de forma acelerada nas três últimas décadas, na verdade, não é para todos, e facilmente fomenta radicalismos. Mas conviver com gentes de outros países, línguas e raças, de cores diferentes e de fés distintas são bênçãos e oportunidades únicas para ficarmos culturalmente mais ricos e termos oportunidade de alargarmos o nosso mundo, vendo-o por olhos e culturas diferentes da nossa. E isto não é para todos, porque já vem do Paleolítico, gostamos de procurar os que nos são semelhantes, e desconfiamos social e culturalmente dos que não são iguais a nós, ou porque têm outra cor, outro deus ou falam sem que os possamos perceber. Isto está estudado, e sabe-se que, em média, demoraremos três anos a vencer esta desconfiança antropológica e tribal à qual, provavelmente, porque também são instintos de defesa, também devemos boa parte da nossa sobrevivência como seres humanos (e isto independentemente da tribo a que pertencemos). Herdámos do Paleolítico (ou até antes) um cérebro reptiliano, até repugnante, e só com ele já não nos governamos. Estamos em 2021, a globalização foi e é uma oportunidade. E esta é a era pós-moderna, em que certos instintos se tornaram totalmente arcaicos e ninguém anda com flechas na mão atrás de veados…
No Entroncamento, terra de caminhos de ferro e de encruzilhadas da vida, a nossa natureza tem origens muito diferentes. Viemos beirões e alentejanos, da charneca e da lezíria, depois do norte e do sul. Sempre nos acolhemos e convivemos. Hoje chegam pessoas de outras paragens e de outros paralelos, se os virmos como ameaças elas sê-lo-ão, se os virmos como oportunidade de alargarmos o nosso mundo, assim será. São os novos “outros”, como nós já os fomos. Devemos isso uns aos outros. O pior problema que se pode criar no Entroncamento é o da guetização, e o melhor é desfazer os que também já existem (pelo menos mentalmente) com comunidades que se desestruturaram e que perderam as velhas tradições de nómadas que as orientavam.
Outro aspeto: muitos de nós, sobretudo a maioria dos mais jovens, sobretudo porque a nossa cidade não tem tecido económico para eles, vamos um dia sair da nossa cidade para trabalhar e viver lá longe, e cada vez mais esse lá longe é Espanha, Inglaterra, Itália, Brasil, Austrália ou até o Suriname (sim, um antigo e brilhante aluno meu vive e trabalha lá). Como devemos ter alguma inteligência emocional, é um bom pretexto para nos colocarmos na situação de quem chega.