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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt 

O rapper, cantor, compositor e ativista luso-cabo-verdiano Dino D’Santiago, nascido há 41 anos na Quarteira e filho de pais imigrantes oriundos de Cabo Verde, lançou há umas semanas, numa conferência de um semanário português, o repto da criação do um novo hino nacional para Portugal. Sustentando que o atual hino, composto já no final do século XIX, era um pouco bélico, e que as novas gerações não se reviam nele nem necessitavam de um hino assim, o rapper notou que era necessário algo “menos bélico, que incentive menos às guerras”. Dino D’Santiago, reconhecido como uma das mais interessantes e multipremiadas vozes do rap nacional e da world music, e que em 2021 merece mesmo a distinção de integrar a lista global das cem personalidades afrodescendentes mais influentes do mundo, acrescentou ainda: “Não gritemos mais ‘às armas, às armas’ e não marchemos mais ‘contra os canhões’”. Em suma: “Os nossos filhos não precisam disso e a nova emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor”. A opinião do cantor é respeitável, os hinos não são eternos, A Portuguesa também não, todavia discordo dele, embora entenda as razões por que a sugere.

Em 1884 Portugal, como potência europeia e colonial, apresentou no Congresso de Berlim a pretensão de unir em África os territórios de Angola e Moçambique acrescentando-lhes uma faixa intermédia no chamado Mapa Cor-de-Rosa, cuja posse reclamava para si. Era um projeto que ligava o Atlântico ao Índico, algo ambicioso, mas que acabou por se tornar humilhante. A Grã-Bretanha, com algo de maior e magnânimo nos seus propósitos (ligar sob a sua coroa as cidades do Cairo, no Egito, e do Cabo, na África do Sul) discordou, porque haveria um conflito óbvio na interseção dos dois projetos, não gostou e o conflito culminou com o Ultimato Britânico, em 1890. A cedência de Portugal às exigências nele impostas foi considerada como uma humilhação à pátria lusa. Foi este o contexto histórico, social e político que inspirou a letra (que é o que está em causa) do hino nacional, escrito como um descontentamento, uma indignação e uma revolta contra as infames obrigações impostas pela Grã-Bretanha ao nosso país. É neste Portugal com a asa ferida que deve ser lida a letra de A Portuguesa, um símbolo nacional de reação e de exaltação, e uma canção de marcada feição patriótica num contexto de um ultimato desferido por um aliado histórico do país. É verdade que, ainda comungando desse estado de ânimo bem patente em duas estrofes singelas (Levantai hoje de novo/O esplendor de Portugal), a canção composta com a música de Alfredo Keil e letra do poeta Henrique Lopes de Mendonça enaltece os Heróis do Mar, e o nobre povo, exorta a luta pela Pátria, exalta o patriotismo e o orgulho nacional magoado, recorda os egrégios avós, e, falando de canhões, é para marchar contra eles que apela e a que se propõe. Falar de agressões não é apelar à violência, e no poema parece bem claro que o essencial é (ou foi) resistir-lhes, fazer-lhes frente. Dino não se emociona muito com o hino nacional, paciência, está no seu direito, eu também não me comovo quando ouço os seus raps ou a cantar cançonetas, estou no meu direito. Entretanto, espero que na futura revisão de depuração política do hino não escolham para o produzir nenhuma comissão interministerial, interétnica e multirreligiosa de representação proporcional com comissários-poetas-políticos muito bem pagos à peça para produzir um ensopado insonso e higiénico de brócolos, soja, virtudes crioulas e sambistas, e muitas verduras.

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Com tudo o que carrega no seu simbolismo romântico da última década de novecentos, o hino de Mendonça e Keil tem algo de circunstância, mas também algo de essencial. Há algo que se sente como uma fragrância que se evaporou, mas também mantém um perfume que persiste na memória e penetra na alma. Quando o oiço ou canto há comigo (e geralmente mais uma pequenina multidão de portugueses que a entoam em uníssono) algo que me estremece, sensibiliza e emociona. E estou longe de ser o único, sinto isso na esmagadora maioria, para quem são irrelevantes os pequenos detalhes ou alguma subtileza lexical em que alguma picuinhice esbarre, descortinando nela algum pecado mortal. O hino é algo que, com o seu simbolismo, e para além das estrofes e das rimas, nos emociona, motiva moralmente e mobiliza para uma causa. Evoca uma memória de grandezas, resistências que nos individualizaram e tornaram únicos, uma ideia que nos identifica e une como nação. Interpretá-lo à letra é porventura amputá-lo das suas asas, com que se eleva e nos eleva com ele.

Quis o mais puro acaso que, alguns dias após o rapper ter lançado o desafio para uma revisão do hino (o que só por si, e conhecendo o totalitarismo do linguisticamente correto que corveja por aí, me faz recear o pior), ter dado corda ao carro e às botas e visitar pela primeira vez o estimulante Museu Histórico Militar de Almeida, inaugurado em 2009 em pleno coração da histórica vila raiana e beirã. O espaço, todo ele subterrâneo, para se resguardar de ataques, bombardeios, e servir de refúgio à população, é particularmente interessante, e recorda os múltiplos acontecimentos e crueldades a que a comunidade local foi sujeita ao longo de séculos, foi um baluarte da defesa da nacionalidade. Com seriedade e critério aí se evocam episódios em que Almeida se ergueu para ser a primeira resistência às ameaças à soberania de Portugal. Vale a pena ver, e aí, na evocação mártir da vila de baluartes, revelins e fortalezas, na resistência na Guerra da Restauração da Independência, no Combate do Côa ou na resistência aos invasores do General Massena, na explosão de paióis, entre outros episódios, se entende a estatura da vila e a pequenez da birra semântica contra o hino. Além de uma imersão na História de Portugal, a visita é também um mergulho na memória das dores que a independência do país sempre causou. Saí de lá com a ideia de gratidão que o país deve a Almeida e à sua história de heroísmo e abnegação na defesa da fronteira.

Acredito que Dino D’Santiago terá feito a sua proposta na mais pura boa-fé. Nenhum hino é intocável, mesmo A Portuguesa, mesmo para além de todo o seu simbolismo. No fundo, Portugal mudou muito desde o tempo do Ultimato. A Monarquia deu, com alguma crispação, lugar à 1ª República, e o Estado Novo de Salazar também entrou em esclerose e decadência, o Império tombou substituído pelos cravos da Democracia e da Liberdade e por um regime alinhado pela Europa. Portugal mudou muito, e o hino, que não é tabu, poderia trazer consigo conspurcações latentes de que seria necessário depurar-se. E os Portugueses são hoje um povo bastante diferente do que seria nos finais do século XIX, tornámo-nos numa comunidade multicultural e multiétnica, a visão paroquial deu lugar a uma cosmovisão. E Dino D´Santiago, que é uma expressão bem tangível desta nova realidade proporcionada pela Globalização, terá a sua perspetiva própria. Uma Globalização de que, curiosamente, os Heróis do Mar e o nobre povo, com as suas grandezas e desvarios, foram pioneiros. Também nós partimos para todas as latitudes que o mundo tem, e em muitas delas por lá ficámos, melhor faria o cantor que se preocupasse com a paz, o pão, a saúde e a educação, a vida dos idosos, a pobreza e o salário médio do país. A canção de Mendonça e Keil terá as suas rugosidades, tem data sim, mas poupem-na a nova higienização. Vale muito mais que o caldinho de brócolos insonso que prepararem…

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