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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Numa destas tardes mais frescas, em passeio sem agenda com um daqueles amigos que já me vêm de uma adolescência precoce e irreverente, que incluiu no seu currículo algumas incursões estivais de bicicleta até à Quinta da Cardiga para uns refrescantes mergulhos no Tejo, jogos de malha nas tardes de sábado e enresinadas disputas de futebol de rua todos os dias que tivessem as férias no chamado campo do padre, dizia-me o César que “antigamente é que era”. Ou logo depois, e sem eu perceber se era em formato para não receber nenhum “mas”, para não receber nenhuma adversativa, e ainda de forma eloquente: “Tivemos uma grande juventude, aquilo é que era!…, agora são uns franganotes de aviário, uns dependentes de écrans, nutridos a maizenas maradas e que, com os olhos nos telemóveis, nem sequer os levantam para admirar uma bela rapariga na rua e agradecer a deus a visão”. É uma bela nostalgia, capaz de compensar algumas perdas mais ou menos evidentes, ajuda a ilusão de se ter vivido a melhor juventude do mundo, na verdade, como diria Monsieur Jacques de La Palisse, isto vale o que vale…

Com outro amigo da escola, que já não via há alguns anos, e que desfruta hoje dos privilégios de uma reforma de ouro devido aos anos de emigração na América, num encontro fortuito próximo da praça de táxis da cidade, apontou o braço em frente, e com o indicador com mira certeira disse-me mais ou menos isto:

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̶  Repara, Vicente, naquele lado da rua, e isto vai tudo a eito… Lembro-me de por ali se alinharem quatro restaurantes e snack-bars, duas barbearias, duas ou três pensões, salas de jogos, bilhares, matraquilhos, uma ourivesaria, o gabinete de um advogado, e do outro lado, um café, duas tabernas, uma padaria, uma mercearia, uma papelaria, uma sapataria, uma loja de bebidas, e até uma travessa que desapareceu por inteiro. Isto é que era vida, sempre muita gente. Aqui, mesmo às quatro da manhã, em pleno inverno, havia sempre pessoas na rua a conversar. Havia muita vida, hoje, os estabelecimentos fecharam, e mal anoitece, tudo morre…

Há umas semanas, num hotel de Coimbra, num dos algo bissextos encontros dos antigos estudantes (e amigos) da minha venerada república da Alta, o almoço efetuado, de que dificilmente algum dia me lembrarei da ementa digerida ao longo da tarde, foi, como sempre, uma emoção, para não dizer pior. Num instante, todos rejuvenesceram pelo menos 40 anos, recordaram-se picarescos episódios, pequenas bazófias e grandes prosápias, umas coisas bastante caricatas, a que o tempo deu agora o perfume dos bons velhos tempos, outras verdadeiramente épicas, a que também sabemos dar novas perspetivas. Falámos das incursões furtivas de caloiros nas noites frenéticas com raparigas generosas, bonitas e bem afreguesadas na Rua Direita, nas noites de estudo quanto bastasse, do jogo do King até ao clarão da manhã, de discussões sobre ontologia, existencialismo, derriços de quinze dias e os muitos primores da anatomia feminina. Foram os bons velhos tempos. Foram, e agora evocam-se envernizados pelos anos, e ornados pela capacidade de depuração da nossa memória seletiva. Há um entusiasmo um pouco postiço, somos sempre capazes de o dissimular. Foram realmente jornadas de camaradagem ímpar e uma amizade que não se pode repetir, filtradas pela memória tornaram-se épicas e sem máculas.

Não sei se isto é geracional ou sempre foi assim. Se todas as gerações de sempre igualmente sempre quiseram compensar o seu envelhecimento e perdas confrontando o seu tempo de juventude com os posteriores em benefício do seu próprio. Ou se este fenómeno, um pouco delirante e irrealista, é recente, e uma ousadia desta modernidade do milénio. O caso chega ao ponto insano de fazer arder incenso em torno de Salazar, o velho déspota do Estado Novo e de quase metade do século XX português. Muitos ainda clamam a vontade de o ressuscitar para resolver todos os problemas que apoquentam este Portugal moderno e europeu, desde a segurança à justiça, do Império Marítimo extinto às questões da decência, da moral e da autoridade. Só por ignorância, hipocrisia ou por nunca os ter vivido, a esses tempos de despotismo, corrupção velada e a absoluta ausência de liberdades cívicas, se pode continuar a dizer que eram abençoados. Tempos aberrantes de muita miséria, desigualdade e condenação social a não se poder nunca evoluir.

Mas a questão que se coloca é esta: por que motivo, apesar de tantas evidências em contrário, há tantos de nós a continuar com o mantra de que “antigamente é que era”, dos “bons velhos tempos” e da crença de que, com um mágico, como era Salazar, se resolveriam todos os problemas do país e mais um par de botas?

Sendo Portugal, quase cinco décadas após a Revolução de 1974, e quatro após a abençoada adesão à Europa, um país incomparavelmente mais desenvolvido e culto, mais equilibrado socialmente e mais justo, com um sistema de Saúde e de Educação bastante melhores que nos tempos da ditadura, por que razão é que ainda tantos invocam como seus favoritos esses tempos sombrios, de misérias e de injustiças? E a sustentar que “antigamente é que era…” Como é possível? É possível.

Como já nem a fauna dos confins oceânicos, nem a proveniência ontológica do Espírito Santo, escapam ao sagrado escrutínio da ciência e da experiência, também recentemente houve alguém que se questionou sobre a natureza e o lastro psicológico desta coisa estranha e que nunca enfada de acreditarmos que “antigamente é que era…”, que as pessoas dantes eram menos egoístas, mais generosas, mais altruístas e menos corruptas…, que o que é bom está a evaporar-se, a moral entrou em declínio, e é o diabo que está a tomar os seus lugares…

Segundo Adam Mastroianni, psicólogo e investigador entrevistado recentemente pelo jornalista Tiago Ramalho para o jornal Público, essa ideia não passa de um romantismo, uma ilusão do nosso cérebro que não resiste ao confronto com a realidade. Para ele, o declínio moral é uma pura ilusão, e um conceito resultante do modo de funcionar da nossa mente, tal como a ideia de que, por qualquer razão, há menos bondade, menos honestidade, mente-se mais, mata-se mais, desvia-se mais dinheiro e há menos respeito na sociedade – e apresenta resultados experimentais para assegurar a sua asserção. Procurando sintetizar as pesquisas e o pensamento do psicólogo experimental da Universidade de Columbia, a ideia é a de que a nossa memória tem uma forma curiosa de lidar com o passado: procuramos ficar com o melhor que ele teve, e tendemos a eliminar da mente as piores recordações. É uma espécie de filtro, que coa o bem, enquanto as más evocações vão pelo cano. As melhores memórias são as da nossa infância, sentíamo-nos protegidos pelos pais, avós, vizinhos, familiares, todos nos acariciavam, faziam festas e dirigiam palavras doces e ternas. Foi a idade de ouro do nosso pequeno mundo. Depois disso, subitamente, o mundo começou a piorar, e entrou em colapso quando chegámos a adultos…

Há outro aspeto para esta crença de que “antigamente é que era…” E tem o nome de viés da informação e da comunicação social, que se acrescenta ao viés da memória. Só o mal e o péssimo (cujos pseudónimos podam ser abusos sexuais, pedofilia, violência na família, assassínios, chantagens, ódios…) têm o direito a ser noticiados. A sociedade é um pouco macabra… Se o leitor for um benfeitor, um altruísta e um filantropo toda a sua vida, corre o risco de não ter direito a uma linha escrita a seu respeito em lugar algum dos media. Com a proliferação dos meios de comunicação social, incluindo os mais recentes blogs, páginas pessoais, e plataformas e redes sociais, as coisas descambaram ainda um pouco mais, e o bug do cérebro aumentou, dando origem à ideia de um mundo inseguro, cruel, despersonalizado, onde só o ódio e as frivolidades prosperam, e que tudo o resto piorou.

Claro que isto tem consequências naturais, as pessoas procuram as suas conchas, os seus refúgios, mesmo que sejam nas suas memórias de infância. E a resposta natural, leitor, é que, apesar de toda a retórica, a sociedade está decrépita e as pessoas tornaram-se céticas. “Antigamente é que era…”

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