
O pequeno, já dentro do supermercado dera mostras de que não estava num dos seus melhores dias, cismara num daqueles carros de combate blindados que vira logo ao pequeno-almoço num filme da TV (uma baby-sitter barata, mas perigosa) e parecido com um outro de um video game em que o irmão mais velho consome horas da sua adolescência, e com que pode, se o quiser, reduzir virtualmente a população de uma cidade para metade. Acontece que a mãe não só também não estava nos seus melhores dias, como não estava muito voltada para gastar ainda uma quantia considerável e não prevista no orçamento do mês para satisfazer os caprichos do fedelho. Fez birra, bateu o pé, cruzou os braços com ares do tipo “vamos ver como é que isto vai ficar”, e como não ia ficando inclinado nem para um lado nem para o outro (o padrasto mantinha-se impávido e neutro, como era seu hábito), quis subir a parada da impertinência. Primeiro, a rebolar-se e a gritar no chão e, por fim, a fugir da catedral pagã com berros e um chorrilho de asneiras, a pobre mãe atrás dele, deixando as compras na caixa…
Forjado já aos oito anos na ética do consumo voraz, do iPhone e da Play Station, que substituíram rapidamente a papa maizena e a chupeta (pedagogos ilustres, como Jean Piaget, garantiam que a partir dessa idade o carácter do pingente está formado, e já pouco há a fazer para o alterar), o “barnabé” veio para a rua e ao atravessá-la, cego pela irritação, obrigou um condutor a uma travagem e a uma guinada abruptas para não o atropelar. A mãe, desesperada, ainda o pôde puxar por um braço e, face à iminente dose de um par de palmadas, o condutor abriu a porta da viatura e, naquela retórica de simpatia típica, ainda falou alto para a mãe:
− Não lhe dê palmadas, é uma criança, a senhora não pode fazer isso… Ao que a mãe, já visivelmente nervosa com o caso, teve resposta pronta e contundente: − Aos seus eduque o senhor, se quiser, é lá consigo, mas este é meu, fui eu que o dei à luz, ninguém lhe quer mais do que eu, e eu é que sei como o educo… A mulher pegou com firmeza pelo braço esquerdo da criança, e não chegou ali a destilar a óbvia irritação, mas lá que as palmadas iam prometidas para casa, disso ninguém ficou com dúvidas no magote de gente curiosa e (depois) opinativa que logo ali se formou e comentou.
O caso da educação de uma criança nunca há de ser consensual, já suscitou e há de continuar a merecer muitas polémicas, e na mesma toada surge a forma como a sociedade e, neste caso, a sociedade portuguesa, vê o fenómeno dos castigos corporais dos pais às crianças, e no que eles terão de persuasivo ou dissuasivo, se são naturais e aceitáveis ou, pelo contrário, se são umas aberrações selvagens, herança de eras passadas, e algo verdadeiramente incompatível com o conhecimento que se tem da criança em muitas áreas do saber do século XXI.
No passado dia 14 o Instituto de Apoio à Criança (IAC) promoveu em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian (e online no Facebook do IAC…), um encontro em que o título era já uma declaração pública − “Castigos Corporais Nunca Mais” – e o lema, que pertence também à campanha que o secundava, ia-lhe na pegada – “Nem Mais Uma Palmada”. É claro que o encontro contou com insuspeitos especialistas de áreas como a Psicologia, a Saúde, o Direito, naturalmente da Educação, e, ainda mais naturalmente, da Sociedade. E devo colocar desde já em dúvida, por simples princípio metodológico, a seriedade ontológica de um encontro (debate?) que ostenta logo na sua apresentação tais titulações panfletárias. Acredito é que se estejam a criar muros de borracha na educação das crianças, suaves operetas de discursos simpáticos, às vezes hipócritas e quase sempre fantasistas, criadas por quem defende uma coisa para o país e aplica outra, muito diferente, lá em casa… E caem no extremo oposto ao dos outros que, no Estado Novo, acreditavam que era com castigos corporais e uma violência barata que se resolviam os problemas nas escolas. Vamos mais devagar…
Na origem do histórico problema do Ocidente, o do recurso a meios físicos e de coação na educação, está a perspetiva pedagógica do filósofo iluminista do século XVIII Jean-Jacques Rousseau. Foi com ele que se passou a olhar para a Infância de uma maneira diferente, de certa maneira reinventou-a para a modernidade: “A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens”, defendia. É na sua filosofia que se baseiam boa parte das novas teorias pedagógicas para o mundo moderno. Mas nem todos comungam do credo de Rousseau e dos seus seguidores. Há muitas reservas e alguns exageros em certos radicalismos, que podem ser muito mais graves que um ralhete e duas palmadas no rabo. E expor a criança a outros grandes perigos de que não quer tomar consciência. O que está em causa é o papel do Estado em relação aos cidadãos, dos pais na sua relação com os filhos, e os direitos destes. E a verdade é que diversos países da União Europeia recusam-se ainda a assumir a proibição completa a castigos corporais. O que está em causa é apenas isto: até onde deve ir o Estado na sua política educativa, e a transferência dos papéis parentais para o Estado?
Têm os pais direito a recorrer a castigos físicos para garantir o que consideram mais adequado na consolidação de princípios, de valores e de propósitos dos seus filhos? E tem o Estado o direito de interferir nessa educação para além de um limite decente que é social e comummente aceite, de substituir os pais e a família, intervindo no que já pode ser considerado uma interferência totalitária?
Se é absolutamente inquestionável que a criança deve ser protegida na escola, na rua e na cidade, já dentro da esfera íntima da família o Estado deve ser bastante cauteloso na sua intervenção, pois é lá que vive quem mais quer e mais ama a criança, e duas palmadas no rabiosque hoje podem evitar dramas pessoais e grandes danos sociais a médio e a longo prazo. Sendo que tudo deve ser equacionado com bom senso, equilíbrio e um adequado sentido da lei das consequências naturais.
Uma criança crescer com o sentimento de impunidade de tudo o que faça, cresce mal. Na vida é preciso ouvir sins e nãos, porque ela tem dos dois. E é quando sentem um ambiente de impunidade que alguns jovens se podem tornar uns verdadeiros déspotas lá em casa. Ouvir só sins torna as crianças mimadas, e ouvindo só nãos serão sempre frustradas. Criam-se obviamente distorções no carácter, essa educação é enviesada e imperfeita. E é no seio familiar que ela é formada, porque é lá que a criança é amada, compreendida como pessoa e acarinhada (mesmo que com um raspanete e duas palmadas sobre as fraldas). O Estado intervir demasiado e com regras cegas nesta delicada bolha vital da criança pode ser o equivalente a um elefante a entrar numa loja de cristais e delicadas porcelanas… Cuidado, o Estado deve ser como o sal (apenas quanto baste), mas há sempre a tentação totalitária…, e uma mãe verdadeira é decerto mais autêntica em extrair o melhor de uma criança porque vale mais o afeto que a ideologia do politicamente correto (e hipócrita).
E ultimamente esta tentação totalitária anda travestida pelos aliados ativistas das minorias ativas e condicionadores temíveis da opinião pública (que têm no atual presidente-comentador e na sua incontinência verbal um poderoso associado), cada vez mais alinhados com as superiores orientações do politicamente correto e da prole descendente. Preparar os filhos para a vida é muito mais sério que sacrificá-los a ideologias que pretendem sobrepor o Estado, que quer cidadãos cumpridores, ao papel do sagrado reduto familiar, que deseja seres humanos inteiros, completos e amados.