Com o tempo, o episódio, singular nas suas circunstâncias, tornou-se simbólico pelo que representava, e um estado de alma que só não era fugaz porque, na sua frágil inocência, lhe atribuíamos o significado de uma transcendência poética, tão bela como todas aquelas de que só a natureza era capaz. Era a chegada à nossa cidade ou muito perto dela da primeira andorinha do ano.
A partir de meados ou finais de janeiro, pouco depois de se terem calado os cantos dos Reis e arrumado os presépios com as bucólicas e coloridas figurinhas de barro, e o frio mais severo parecia começar a dar espaço aos primeiros raios de um sol mais caloroso, aí estávamos nós ao final das tardes, depois da escola primária, e rumo a casa, a escrutinar o céu para ver quem seria o primeiro a avistar a abençoada ave, de regresso após a sua expedição de sobrevivência até ao norte de África ou a outros abrigos mais temperados da Europa. Quem descortinasse a primeira andorinha do ano merecia, pela acuidade ou pela pertinácia revelada, uma espécie de galardão e melhor estatuto entre a tribo dos fedelhos do bairro. Hábitos, tão singulares, adquiridos na infância, e inspirados pelos nossos avós, a maioria deles atados ao mundo rural, o mundo da sua sobrevivência e de que conheciam muitos dos seus segredos antes da era dos agroquímicos, da Monsanto e de águas maradas, raramente se perdem, e ainda agora não lhes perdi o jeito…
Hoje, seis de fevereiro, é, neste ano de 2023, a data a registar nos meus canhenhos do avistamento da primeira andorinha do ano, em pleno palco que lhe foi oferecido pelo Parque Almourol, junto ao Tejo, em Vila Nova da Barquinha. Aliás, da primeira, da segunda, da terceira e de mais uma meia dúzia de companheiras hirundinídeas, inconfundíveis. Admiráveias aves! Voam quase sem fazer esforço, sem entropia nem trepidação, muito longe do voo dos estorninhos ou dos corvos, deslizam como uma sinfonia. Altivas, dorso negro em contraste com a alvura do ventre e uma cauda bem bifurcada, num voo subtil, um opus mozartiano mágico e incapaz de deixar um risco no céu, umas verdadeiras Spitfires ziguezagueantes à procura do combustível do céu, que encontrará nos milhares de insetos voadores intercetados e engolidos todos os dias em pleno voo. É uma espécie de pré-primavera que se anuncia. Na andorinha há o seu quid de psicanálise, aliás, ela é sobretudo a nossa própria vontade de regenerar a vida que ela promete.
Chegaram cedo? Chegaram tarde? As andorinhas têm, como os relógios Ómega, este espantoso predicado: nunca se adiantam ou atrasam, chegam quando têm de chegar, sempre na altura certa, aquela que a sua intuição biológica dita para o reinício da época da procriação, e de perceber quando vai haver o sustento adequado para a prole que vai encher o ninho…
Vestidas de penas de forma bem distinta da outra passarada mais comum, é também distinto o modo como constroem os seus ninhos, da forma mais urbana, aproximando-se das habitações e ficarem perto das pessoas que, por vezes, confundem esta familiaridade com incómodo, e lhes destroem (ainda hoje) por pura crueldade ou ignorância a “assoalhada”, às vezes já com novos inquilinos debaixo dos beirais das suas habitações. Laboriosa e cuidadosamente esculpidos com barro, lama, e por vezes até palhas e penas, tanto pela fêmea como pelo macho (habitualmente a espécie é monogâmica), em locais que procuram não ser de fácil acesso aos predadores, os ninhos da maioria das andorinhas são pura poesia que rima com a primavera que apregoam.
Aprendi, em criança, eu e os meus amigos, que era uma ave sagrada a andorinha, uma ave protegida por Deus (tal como as cegonhas que também migravam, e depois poisavam imperialmente no campanário da igreja da minha aldeia beirã). E longe de nós devia ficar qualquer pensamento ímpio, e muito menos alguma atividade com aquelas fisgas em formato de Y, pressões de ar, do tipo Flaubert, ou gateiras com agúdias agitadas no chão que pudessem conspurcar a saúde e, menos ainda, pudesse pôr em causa a sua sobrevivência. Alguns, já rapazotes, eram verdadeiros passarinheiros, atividade hoje praticamente desprezível, mas não há meio século. Fritos, os pássaros eram na taberna bom conduto para o petisco e a rodada de vinho, e, nas hortas, searas e vinhas bastante mal-amados, tais os danos causados aos agricultores.
Recordo-me ainda hoje das aulas de Ciências na minha escola quando, pela meada de janeiro, eu interpelava os meus alunos sobre o que eles sabiam das andorinhas, e percebia logo que era muito, reflexo do que tinham visto nos programas da National Geographic, do Odisseia e noutros canais, em documentários e séries dedicados à vida selvagem e às sempre eletrizantes harmonias cantadas pela natureza. Sabiam muito e perguntavam também muito. Porque quanto mais se sabe mais se percebe o que ainda falta conhecer, e também especulávamos, não tão filisoficamente como Sócrates, o sábio ateniense, mas indagando sobre os seus hábitos e mistérios (que depois se alargavam a outras espécies), porque eram migratórias, e porque regressavam nesta época e não noutras igualmente possíveis. Nestas alturas a atenção redobrava, e certamente triplicava quando eu lançava um repto:
− Vamos ver quem entre todos vós é, este ano, o primeiro a descobrir a primeira andorinha que chegar ao Entroncamento. O desafio estimulava-lhes o entusiasmo de procurar no azul do céu as belas aves sagradas, mas também queriam saber bastante mais. E fiquei quase certo de que muitos aderiram à causa das andorinhas (alguns deles chegaram a fazer ninhos artificiais com um sucesso validado pela sua posterior ocupação por casais) e também de outras espécies. Aquilo emocionava-os seriamente, mesmo os que pareciam indiferentes a tudo o que acontecia à sua volta, pareciam também viver os episódios contados da vida das andorinhas. Um dia, num típico dia de primavera, logo ao primeiro tempo da manhã, um aluno chegou à aula visivelmente perturbado e rodeado por dois ou três colegas que procuravam dar-lhe ânimo. Rapidamente me apercebi do que sucedera e, depois do sumário, e com as hostes já mais serenas, pedi-lhe para contar calmamente o que acontecera…
Contou então que, pelo caminho, encontrara uma dezena de ninhos de andorinha destruídos no passeio, alguém decidira que aquelas aves não fariam ali o ninho, mas, e fora isso que mais magoara o meu aluno, em dois deles eram visíveis duas ninhadas inteiras, com a penugem tingida pelosangue, inertes, e naturalmente mortas. A comoção do rapaz propagou-se à turma, e percebi que a sensibilidade ambiental dos mais jovens perante casos reais e vividos era muito maior do que alguma vez eu pudera imaginar. A geração das consolas, dos vídeo games e das redes sociais ainda era recuperável, bastava dar-lhe uma oportunidade para isso. Falaram sobre se as leis protegiam os animais, de como se devia alterar a consciência dos mais velhos pelas andorinhas e muitos outros animais e até pela natureza. Falaram dos lobos, dos linces, das osgas, dos golfinhos, falaram… Acredito que naquela e noutras aulas tenha havido sementes para o crescimento da sensibilidade ambiental, que tenha nascido ali algum ecologista, mas espero que nenhum se tenha tornado num radical da classe, daqueles que pouco favorecem as nobres causas do ambiente.