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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

O mundo mudou, o país mudou e o Entroncamento também, e muito. E de onde eu vejo com mais nitidez todas estas mudanças, as que vejo e sinto na nossa cidade, as que capto nas minhas itinerâncias pelo país e pelo que reparo no mundo, percebo-as da praça, o belíssimo logradouro que na cidade honra o nome do grande capitão Salgueiro Maia. Por aqui passa o novíssimo Entroncamento, que parece tão diferente, mas que talvez não seja mais do que o Entroncamento de sempre, mas num plano e a um nível e uma escala diferentes.

Em caminhada, e antes de chegar à praça, para os lados de ande antes havia a Quinta da Capela e um vasto laranjal, hoje restaurado em artérias, rotundas e amplos passeios, percebo que uma boa vintena de novos concidadãos se empenha numa estranha competição que, pelos adereços utilizados, me parece ser cricket de rua, em versão informal, mas que está longe de anestesiar o entusiasmo dos batedores e rebatedores com os seus bastões. Percebo também que há uma evidente uniformidade étnica nos seus praticantes, homens, ainda jovens, de altura mediana, uma língua estranha que acompanha as corridas e sublinha a excitação das jogadas, e sobretudo uma fisionomia que sugere, sem grandes dúvidas, a sua origem no Industão, o sub-continente no sul da Ásia, aliás são da Índia alguns dos mais exímios praticantes da modalidade, o que ajuda a entender a sua devoção pela modalidade que aí é bastante popular. Pelo caminho, num espaço aberto, eis alguns pequenos ´, brasileiros, o que se torna evidente tanto pelo pelo sotaque regional como pelo estilo exibido de futebol de rua, “brinca na areia”, apesar de o fazerem sobre uma dura plataforma urbana de cimento e lajes baratas.

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Na praça é fértil a diversidade de personagens, situações e episódios que ilustram o que é a cidade de hoje, e que podia bem satisfazer a curiosidade e a ciência de algum sociólogo menos ortodoxo. Dois homens, já com certa idade, conversam longamente entre si, com a curiosidade de se terem sentado nas extremidades de um banco de jardim e de costas voltadas um para o outro, estranho caso de estudo para algum antropólogo ou de próxima clientela para o psiquiatra. Um de boné e o outro equipado de capacete, duas molas da roupa nas calças, já junto aos calcanhares, e uma bicicleta que afaga como se fosse uma mulher, a quem oferece uma pausa depois de, como ciclista singular e contumaz, muito pedalar pelas artérias centrais do burgo.

Quatro mulheres já de muito cabelo branco a emoldurar-lhes uns rostos envelhecidos pela vida e sentadas bem próximas noutro banco conversam bem alto entre si, com a particularidade de as quatro falarem todas ao mesmo tempo, enquanto batem com as bengalas na calçada que têm aos pés, talvez para sublinhar a convicção daquilo que dizem, mas nenhuma das outras parece manifestar qualquer interesse em ouvir o que as outras têm para dizer, apesar de pertencerem à mesma geração, o que em nada desabona na importância que aqueles momentos únicos têm para todas elas, talvez momentos de pura evasão, em que falam e limpam o que lhes vai na alma, e isso já é muito.

Um jovem chinês, com quem já me cruzei algumas vezes, atravessa agora a praça cruzando-a em diagonal, mas não despegando o olhar do telemóvel que leva numa mão e que absorve como se disso dependesse a sua vida, mas se não fosse o cão que leva pela trela possivelmente entraria e sairia do lago da praça sem dar por isso. É certamente um nómada digital, para quem o mundo cabe dentro do perímetro do ecrã que define tudo o que lhe interessa, exceção talvez ao fiel canino, que talvez o salve agora do poste que tem a dois simples passos de distância.

A uma mesa da esplanada, um grupo de mulheres ucranianas, com as dores da guerra ainda a dominar por certo a conversação, pois oiço regularmente a invocação ácida de “Putín” naquele sotaque de tom triste da língua da sua pátria do Leste. Mais longe, num recanto com a reputação de ser ponto de encontro das minorias étnicas da cidade, um grupo de afrodescendentes (começo a render-me à ditadura do linguisticamente correto…) ouve as batidas de um estranho e acusatório rapper com uma cadência que, ornamentada de impropérios na língua da globalização, impera com ecos austeros e secos por toda a praça.

É um laboratório humano que, sentados em bancos, a caminhar, montados em velozes trotinetes luminosas ou de bicicletas, a praça volta a exibir nas tardes deste renovo de primavera que já se anuncia. Em todos os grupos observados neste dia revejo um denaminador comum: os indianos jogam com indianos, as velhas senhoras conversam entre si, e os rappers idem, aspas. Impera portanto a lógica da homogeneidade social, e da tendência dos diversos tipos atraírem os iguais, excluindo implicitamente quem não for formatado no mesmo molde. Iguais atraem iguais. Apenas de um grupo, aliás insuspeito, retiro a observação que contraria a tirania desta regra e me consola e faz renascer ainda algumas esperanças. No parque infantil da praça, entre os baloiços, os jogos e as diversões e desassossegos nas casinhas ali alojadas, as crianças caucasianas (sim, lá está, eu disse que já estava próximo da rendição…), afrodescendentes, brasileiras, e até uma menina que alvitro talvez nepalesa, brincam calorosamente umas com as outras, promovendo entre si, por gestos ou alguma forma subtil de comunicação de crianças talvez índigo ou equiparáveis, alguns jogos. Já se diz que anunciam uma “nova era”. Não sei se será assim, mas entre estes miúdos não vejo fronteiras, nem cores, nem línguas, nem etnias, mas divertem-se em sintonia e organizando brincadeiras que talvez eles próprios ali as tenham inventado. E, na verdade, na oportunidade multicultural que este processo de globalização preparou, são eles que melhor a interpretam e aproveitam.

A multiculturalidade, nas suas diversas dimensões, é uma oportunidade de enriquecimento pessoal e social espantoso, mas não são os adultos que dela retiram proveito, limitando-se a criar uma cidade de multiguetos, em que cada comunidade só vive para dentro de si, fechando-se sombriamente ao exterior, às influências de fora e a outras perspetivas. Com as crianças não, e aceito que esteja nelas a esperança de uma redenção do ser humano. É essa a lição da agitação no parque infantil da praça, não é uma mera alegoria.

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